domingo, 18 de março de 2007

Fiama Hasse Pais Brandão






Fiama Hasse Pais Brandão (Lisboa, 15 de Agosto de 1938 - Lisboa, 19 de Janeiro de 2007) foi uma escritora, poeta, dramaturga, ensaísta e tradutora portuguesa.A sua infância foi passada entre uma quinta em Carcavelos e o St. Julian's School. Foi estudante de Filologia Germânica na Faculdade de Letras da Universidade de Lisboa, tendo sido um dos fundadores do Grupo de Teatro de Letras. Foi casada com Gastão Cruz.

Estreou-se como autora com Em Cada Pedra Um Voo Imóvel (1957), obra que lhe valeu o Prémio Adolfo Casais Monteiro. Ganha notoriedade no meio literário com a revista/movimento Poesia 61, em que publica o texto "Morfismos". É considerada como uma das mais importantes escritoras do movimento que revolucionou a poesia nos anos 60. Foi premiada em 1996 com o Grande Prémio de Poesia da Associação Portuguesa de Escritores. O seu livro Cenas Vivas foi distinguido em 2001 com o prémio literário do P.E.N. Clube Português.
A sua actividade no teatro iniciou-se com um estágio, em 1964, no Teatro Experimental do Porto e com a frequência de um seminário de teatro de Adolfo Gutkin na Fundação Calouste Gulbenkian, em 1970. Em 1974, foi um dos fundadores do Grupo Teatro Hoje, sendo a sua primeira encenadora com Marina Pineda, de Federico García Lorca. Em 1961 recebeu o Prémio Revelação de Teatro, pela obra Os Chapéus de Chuva. É autora de várias peças de teatro.
Traduziu obras de língua alemã, de língua inglesa e de língua francesa, de John Updike, Bertold Brecht, Antonin Artaud, Novalis e Anton Tchekov, entre outros. Colaborou em publicações como Seara Nova, Cadernos do Meio-Dia, Brotéria, Revista Vértice, Plano, Colóquio-Letras, Hífen, Relâmpago e A Phala.




1961 - "Morfismos", in Poesia 61
1967 - Barcas Novas
1970 - (Este) Rosto
1974 - Novas Visões do Passado
1976 - Homenagem à literatura
1978 - Área Branca
1978 - Melómana
1985 - Âmago I/Nova Arte
1986 - F de Fiama (antologia)
1989 - Três Rostos
1974 - O Texto de Joao Zorro (Obra poética)
1991 - Obra Breve (Obra poética)
1995 - Cantos do Canto
1996 - Epístolas e Memorandos



MOSTRA EVOCATIVA






Fiama Hasse Pais Brandão, 1938-2007




Fiama Hasse Pais Brandão marcou o panorama cultural e literário português da segunda metade do século XX com uma originalidade incatalogável e com uma marca pessoalíssima de duro trabalho de reinvenção e experimentação dos limites da escrita poética, que tornam a sua obra inicial de leitura lenta e penosa, quase esfíngica, mas que, entreaberto esse universo nunca totalmente desvendado, tem o dom de revelar um conhecimento hermético que busca a essência da palavra. Depurada na forma, densa, metafórica, a obra de Fiama, entre o hermetismo e uma fase mais recente de inventário do real, desenvolve-se também por outras veredas, infelizmente menos lembradas, tais como o ensaísmo e a dramaturgia, onde se revela a sua absoluta determinação decantadora. Investigadora e conhecedora da inteligência secreta da(s) língua(s), desenvolveu igualmente notável actividade como tradutora, facultando aos leitores portugueses o acesso a textos incontornáveis do universo cultural alemão, nomeadamente de Novalis e Brecht, sem traições.


Epístola para Dédalo

Porque deste a teu filho asas de plumagem e cerase o sol todo-poderoso no alto as desfaria?Não me ouviu, de tão longe, porém pensei que disse:todos os filhos são Ícaros que vão morrer no mar. Depois regressam, pródigos, ao amor entre o sanguedos que eram e dos que são agora, filhos dos filhos.
Fiama Hasse Pais Brandão, in Epístolas e Memorandos, 1996


Sei que o cérebro o coração e o ventre são uma só forma. O mesmo ponto claro no alcatrão profundo da abóbada. Que o cérebro murmuracomo o estorninho que devora a verduraque se estende diante dos olhos. O ventre, esse, pernoita e imita-o ao som do ritmo do coraçãoque digere os vegetais túrgidosa que pude aconchegar os lábios. Nada mais bascula no tectoonde um vapor prende os intervalos. Costelas, harpa da noite, com um somde osso cristalino em que não tocosenão quando o cadáver se desenvolverdeste corpo ornamentado por flores frescas.Assim um tronco esvaziado pelo formigueiro por vezes confunde-secom o meu cérebro, o coração e o ventre.O luar eterniza-se como fundo deste pensamento acerca das formas. É uma pequena cabeça de formiga,tão negra que a agradeço aos mestres clássicos pelo negrume descrito nas cosmogonias.
Natureza morta com louvadeus




Foi o último hóspede a sentar-se no topo da mesa, já depois do martírio. As asas magníficas haviam-lhe sido quebradas por algum vento. Perdera o rumosobre a película cintilante de água no riacho parado. Tal como poisou junto de nós, com o belo corpo magroarquejante, lembrava, ainda segundo o seu nome,um santo mártir. Enquanto meditávamos,a morte sobreveio, e a pequena criatura,que viera partilhar a nossa mesa,depois de ter sido banida das águas foi banida da terra. Alguém pegou no volúvel alado corpo morto abandonado sem nexo na brancura da toalha- que maculava -e o atirou para qualquer arbusto raro que o poeta ainda pôde fotografar.

Fiama Hasse Pais Brandão, em Três Rostos, 1989




Os grous?
As viagens separam-nos do passado. Se apenas viajássemos como grous, sem reconhecer as nações debaixo da quilha do nosso esterno,se não trocássemos os idiomas e as unhascom os habitantes das novas geografias,seríamos nós. Porque o idiomaé fechado e insondável em cada criatura,porque cada nação é o berço de uma línguae os meus poemas noutra língua não são meus.Quando viajamos no mundo não sabemos quem fomos.




Fiama Hasse Pais Brandão, em Cenas Vivas, 2000









Sem comentários: