Viajeira”, como gosta de se chamar, Teresa Ricou, a mulher-palhaço, de nome de guerra “Tété”, tem entre as viagens da sua vida – “ficar-me por uma é complicado” –, uma ida recente às Antilhas. Conta-se assim: “Juntou-se a pandilha do costume e fomos à aventura, também como costume, para Guadalupe. Obra do acaso, acho que o avião não veio ou apanhámos o barco errado, acabámos numa ilha chamada Les Saints. Uma ilha do caraças. Cultura francesa sem peneiras, que foi e continua a ser um paraíso de hippies e malta do reggae. Uma coisa muito original, assim meio perdida, com pretos louros e de olhos azuis, uma ‘fricalhada’ de qualidade. Era para ficar uma semana e fiquei três. O que gostei mais? A praia. Maravilhosa, limpa, com música ambiente... e as cabaninhas da pousada em cima da areia. Não me lembro do nome da pousada, acho que era do tipo ‘sun breeze’ ou ‘sun set’. ‘Sun’ era e ouvia-se o Sonny Rollins. Tinha uns restaurantes óptimos e um peixinho fabuloso. Só coisas boas”.
Teresa Ricou foi ardina, hospedeira, vendeu bilhetes na candonga e até fez anúncios à Colgate. A mulher palhaço interpreta agora o papel de rainha
A Rainha Margarida perdeu o filho, o marido e o reinado por causa da tirania de Ricardo III. A peça com o mesmo nome, foi adaptada a partir de textos de Shakespeare e está em cena no Chapitô, em Lisboa. O papel da mulher marcada pela vida foi dado à actriz que há cerca de vinte anos faz de palhaço. 'Teté', a personagem grotesca de nariz vermelho e saias colou-se a Teresa Ricou a ponto de hoje, aos 57 anos, a dona do Chapitô, gostar mais de ver a cara pintada do que sem tinta. Logo ela, que “andou a brincar com o amor” durante anos, que inspirou intelectuais, que foi ciclista na King’s Road, em Londres, onde os rapazes cochichavam: “Olha a portuguesa, aí vem ela!”.
Como é que uma mulher habituada a fazer rir enfrenta uma personagem como a Rainha Margarida?
Foi o encenador, o Francisco Salgado que me convidou. Perguntei-lhe se não havia mais ninguém interessado porque na peça, que tem uma hora, a rainha só aparece sete minutos. O Francisco disse que me escolhiam por causa do peso da minha vida, da minha experiência de espectáculo e por causa da voz soturna, cava e cansada que tenho.
Teve medo?
Eu não tenho medo de nada. Só de lagartixas e cobras; de répteis em geral. Sou uma pessoa com força e quando não tenho, invento-a para me confrontar com as dificuldades. Arrisco-me é certo; às vezes, a coisa dá certo, outras não. Neste caso, tem sido uma belíssima experiência contracenar com jovens actores e bons, e com um encenador também muito interessante. Foi uma mudança: passo a vida a dirigir a minha vida, a do meu filho, a dos meus netos, a das pessoas à minha volta. Passo a vida a dar ordens. Mas sou receptiva a que me dêem ordens; têm é de saber dá-las.
Entra em palco sem artifícios?
Sem nada, sem qualquer tipo de máscara. Tal qual eu sou durante o dia e com o respectivo peso; o de um projecto como o Chapitô, de uma vida de quem se dedica a um projecto com esta dimensão e o peso de quem se confronta com o poder.
Reconhece na realidade o tipo de poder representado na figura de Ricardo III?
Cada vez mais. A diferença é que o Ricardo III apesar de diabólico, de tanto que matava e devastava, era eficiente. Este nosso poder é de uma incompetência total; não só não matamos como não deixamos viver. O poder do Governo português está pelas ruas da amargura, perderam completamente o fio à meada. Quem governa é para governar! Estas meias-tintas, é que eu não aguento.
A Teresa é uma pessoa de roturas?
Completamente. E só não faço neste momento a rotura com Portugal porque já construí este monstro que é o Chapitô e não posso sair, tenho responsabilidades. Se não, não estaria em Portugal há muito tempo.
Imaginava quando saiu de casa, e era a tal ‘saltimbanco’ como lhe chamavam, que viria a ter este ‘monstro’?
Não tinha ideia. Sabia que a minha vida haveria de se construir num pólo de atracção qualquer, de educação e construção porque a minha experiência em França passou pelas ‘maison jeunne’ (casas da juventude), entre os anos 67 a 70 e tal. Sempre achei que poderia fazer uma coisa dessas em Portugal. É filha de uma família de bem, o seu pai era médico, mas aos 16 anos saiu de casa. E desde muito cedo tentei encontrar a minha autonomia e fazer-me à vida. Tinha um curso de estenodactilografia Sim. Eu só tenho o quinto ano dos liceus e fui muito má aluna, mas diverti-me muito e sempre tentei saltar o cerco de uma escola muito fechada; andei em colégios de freiras. E tanto dei que, aos 16 anos, ainda em África, comecei a trabalhar no armazém do laboratório Pfizer, a colar as etiquetas nos remédios. Depois tirei o curso e fui secretária, relações públicas, fui-me fazendo.Sem nunca pensar na carreira artística.Mais ou menos. Sempre fiz rir, sempre fui muito divertida, sem ter consciência do que queria ser. Gostava muito de me vestir, de me maquilhar, de me fantasiar. Só depois mais tarde com a aprendizagem da vida é que percebi, do que gostava mesmo era ser artista. Ter as luzes em cima de mim. Lá pelos 20 e tal anos.Já independente, sozinha e com um filho.Sim, já a frequentar o meio artístico, sobretudo na área do cinema.
Como é que chega a esse meio?
Através da publicidade. Eu era muito bonita e quando me separei do meu marido, tive de continuar a viver o melhor possível.
Fazia publicidade a quê?
À pasta de dentes Colgate, por exemplo. Ou a um champô. Tinha o cabelo muito comprido, bonito, era muito magrinha e muito gira e consegui um contrato de exclusividade com uma empresa de publicidade. Quando vou para a primeira filmagem, com cliente e tudo, estava tão gira, tão gira que até tinha cortado o cabelo todo para ainda ir mais bonita. Tiveram de me pôr cabeleira postiça.
Chegou a fazer cinema?
Não, mas fui objecto de inspiração para quem estava a fazer os filmes. E acabava por estar no ‘backstage’, no guarda-roupa ou na produção. Depois também se enamoravam de mim. De maneira que andava ali de um lado para o outro, a brincar com o amor. E soube-me muito bem. Só venho a entrar num filme já em França, com o Arrabal, no ‘J’Irai Comme un Cheval Fou’. O filme começa comigo à boleia. Faço também o guarda-roupa e os adereços e ligo-me muito a uma actriz, a Emmanuelle Rivá, que foi quem fez o ‘Hiroshima, Mon Amour’. Depois do 25 de Abril trouxe-a cá, para fazer a estreia do filme, até então proibido em Portugal.
Relacionava-se com gente de esquerda, da oposição?
Sim, das artes e das letras. O Alexandre O’Neill, o João César Monteiro, que frequentava muito a minha casa e também ia muito a uma comunidade de ex-padres que viviam na Ajuda: o Fanhães, o Vilaça, o Felicidade, o Carlos Cardoso, ligados à LUAR.
Nunca esteve envolvida em nenhum movimento político?
Não. É-me difícil envolver em qualquer coisa que me tolha os movimentos. Sou uma anarquista, consciente e muito organizada. Se não, não tinha conseguido chegar a aqui. Como é que era com os homens?Ah, isso não vale a pena falar, mas trauteei muito, todos. Era muito vadia. Ninguém me apanhava. Tem o seu lado positivo e negativo. A minha solidão vem por aí também. Mas é perfeitamente assumida. Encontrei o Carlos Monjardino – numa amizade para a vida - em Inglaterra num grupo de jovens, a maioria vindos de África, o que não era o caso dele. Eles estavam nas faculdades e eu andava por lá a trautear, uma fora-da-lei, mas eu é que animava aquilo tudo. Trabalhava em lojas e restaurantes, lavava pratos e servia pequenos-almoços.
Já conhecia o seu ex-marido?
Isso só aconteceu quando eu estava na TAP, como hospedeira de bordo, tinha 20 anos. Em Londres vivia num quartinho e trabalhava em restaurantes. Era muito gira, andava de bicicleta e ainda era virgem. Diziam quando me viam chegar: “A portuguesa, aí vem ela!”. A bicicleta era dada por uma loja onde trabalhava aos sábados. Nessa altura vendia bilhetes no mercado negro para o campeonato do mundo de futebol. E assisti aos jogos todos de borla, com os meus amigos. Andei também metida nas corridas de automóveis em Silverstone, porque eles eram ligados à engenharia de automóveis. Mais tarde, em França fez coisas peculiares, como por exemplo vender jornais Era comum que os emigrantes, os exilados políticos, as pessoas que não tinham papéis fizessem esse tipo de trabalhos. Depois achava muito romântico o filme ‘O Acossado’, com o Jean-Paul Belmondo, e tinha na minha cabeça a imagem da Jean Seberg a vender jornais no meio da rua. Enquanto não fiz a mesma coisa, não fiquei descansada.
Mas se a Teresa era uma mulher realmente bonita, a vender jornais na rua à noite Era e engatava toda a gente. Eu fazia disso uma festa. Começava ao princípio da tarde, na Opera, à saída dos banqueiros e das prostitutas do metro. Com as prostitutas, fazia cumplicidades, diziam-me quem era aquele e o outro. Depois descia, entre as sete e as oito, para os Champs Elisées, para as saídas dos empregos e o fecho do comércio. À noite ia para Pigalle, por causa dos turistas no Moulin Rouge. Ali também tinha cumplicidades engraçadas com os árabes que me davam restos de frango. Tinha uma banquinha muito engraçada, com um guarda-chuva alentejano e fazia a minha ‘performance’, com o meu filho ao lado, a brincar. As pessoas achavam graça.
Foi então que conheceu Arrabal, o realizador?
Eu vendia o Internacional Herald Tribune e o Arrabal comprava-o todos os dias. Era uma figura muito carismática, pequenina e feia. Depois morreu um amigo meu, o Novais Teixeira, crítico de cinema, a quem arrumava a casa (e ele, em troca, dava-me uma sopinha ou um cozinho à portuguesa). Ele morre e eu vou ocupar-me dele no hospital. Quando lá chego, encontrei o Arrabal. O Novais Teixeira tinha-me dito que, quando ele faltasse e eu tivesse algum problema devia ir ter com um sujeito chamado Arrabal. E lá estava ele. Disse-lhe: ‘Sou a Teresa Ricou, a portuguesa’. E fiz o filme.
Quando regressou a Portugal?
Logo após o 25 de Abril. Há uma grande reunião num fórum de trabalhadores, onde estavam o Mário Soares e outras pessoas, onde se decide exactamente quem vem e quem não vem. Instalou-se a maior confusão e vim-me embora. Peguei da minha carrinha Volkswagen com dois amigos brasileiros também exilados e viemos para Portugal. Foi muito curioso ver a tomada das câmaras municipais pelo povo, ser recebida por cravos. Logo a seguir foi o Primeiro de Maio, a apoteose e o encontro com os amigos que tinha cá deixado. Depois vejo grande parte deles a ocuparem os sindicatos e os lugares de direcções e achei assustador. Fiquei preocupada: um ficou aqui, o outro acolá, e eu não estava em parte nenhuma. Decepcionou-se com pessoas na altura?Não me decepcionei. Fiquei altamente surpreendida, pela negativa, porque considero que a Revolução dos Cravos não foi suficientemente profunda. A euforia passou e pouca coisa ficou. Penso que hoje em dia, as pessoas ainda estão à espera de um ditador porque não conseguem tomar o pulso ao país.
Como é que apareceu a palhaça 'Teté'?
Ao longo dos anos, depois do 25 de Abril. Já vinha com essa profissão quando saí de França, depois de algumas experiências em circos. Comecei a ter mais consciência do que era o papel da mulher nos verdadeiros momentos da revolução, com a alfabetização ou a animação das populações. Andei muito pelo Alentejo e por Trás-os-Montes e vi a forma como as mulheres se vestiam, sempre a limpar o vão da escada e a galinha por perto a depenicar. Assim nasceu a 'Teté', a mulher de saias, com a galinha e a vassoura.
Uma mulher linda, que inspirava artistas, de repente cobre a cara?
É estranho.Não só cubro como a transformo. É uma contradição. Hoje em dia, que já estou mais velha, a maneira como me gosto de ver é pintada de 'Teté', uma figura tão feia, tão cómica, tão disforme. Mas acho-me bonita, assim.
Identifica-se mais com a 'Teté' do que com a Teresa?!
Sim, estou um bocado zangada com a Teresa. Tenho de emagrecer, devia parar um bocadinho, fazer ginástica porque eu tinha muito treino físico, acrobacia. Deixei-me disto com o Chapitô. Disse numa entrevista o seguinte: “Meto-me muitas vezes onde não sou chamada; sou mesmo intolerante em relação a senhores preguiçosos. Uma besta se quiser.” É assim?Sou assim, em tudo. Realmente sou uma besta quando me confronto com os poderes instituídos porque estes não funcionam. Lido com crianças altamente carenciadas, os miúdos dos colégios de reinserção social e não posso ser tolerante com quem não lhes proporciona felicidade. Por isso, sou realmente um animal e então sou capaz de bater.
Esses miúdos são difíceis?
Nada é fácil na vida mas são mais difíceis os adultos que estão instalados. Os miúdos não são difíceis, o que é difícil é a sociedade.Mas são miúdos ‘com a escola toda’ Graças a Deus! Eles são uns heróis, não são otários. São os melhores acrobatas.Lembra-se de algum destes miúdos em particular?Sim, o caso de um miúdo que aos cinco anos assaltou o Chapitô. Hoje em dia está casado com um inglesa e vive lá. É segurança de uma firma e escreve-me sempre.
O que é a faz realmente rir hoje em dia?
Para dizer a verdade choco-me mais do que me rio. Rio-me com os meus netos, fora disso não há muito mais coisas que me façam rir. O dia-a-dia está pesado de mais para rir.
Correio da Manhã de 6 de Março de 2007
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