A pianista Maria João Pires nasceu em Lisboa e tocou pela primeira vez em público aos 4 anos de idade. Aos 5 deu o seu primeiro recital e dois anos mais tarde interpretava já concertos de Mozart em público. Entre 1953 e 1960, Maria João Pires estudou no Conservatório Nacional de Lisboa com o professor Campos Coelho, tendo frequentado também os cursos de Composição, Teoria e História da Música com Francine Benoît. Os seus estudos prosseguiram na Alemanha, primeiramente na Academia de Música de Munique, com Rosi Schmid, e depois em Hanôver, com Karl Engel. O reconhecimento internacional de Maria João Pires teve lugar depois da intérprete obter o Primeiro Prémio do Concurso do Bicentenário de Beethoven, em 1970. As suas estreias em Londres (1986) e Nova Iorque (1989) foram largamente aclamadas pela imprensa. Em 1987, apresentou-se em Hamburgo, Paris e Amsterdão, por ocasião da digressão inaugural da Orquestra Juvenil Gustav Mahler, sob a direcção de Claudio Abbado.Maria João Pires apresenta-se regularmente na Europa, Canadá, Japão, Israel e nos Estados Unidos. Fez a sua estreia no Festival de Salzburgo em 1990, com a Orquestra Filarmónica de Viena e Claudio Abbado. Em 1996 apresentou-se em Salzburgo, Ludwigsburg e Lucerna, acompanhada pela Orquestra do Royal Concertgebouw, sob a direcção de Riccardo Chailly.A par com a sua carreira de recital e concerto, Maria João Pires desenvolve uma intensa actividade no domínio da música de câmara. Desde 1989, tem vindo a privilegiar a sua colaboração com o violinista francês Augustin Dumay, na companhia do qual realizou a sua estreia em Londres. Os dois artistas apresentaram-se igualmente em Espanha, na Holanda, na Bélgica, na Suíça e, sobretudo, em França. O duo prosseguiu entretanto a sua actividade, realizando recitais no Japão, em 1992 e em 1994, ano em que Maria João Pires se apresentou também com a Orquestra Nacional de Lyon. Após uma digressão a solo pela Europa, Maria João Pires estabeleceu, de novo, parceria com Augustin Dumay, tendo em vista a realização de concertos na Alemanha, na Jugoslávia e na Bélgica, no final de 1997.O violoncelista chinês Jian Wang viria a revelar-se um colaborador precioso e o trio constituído por estes três músicos realizou diversos concertos em França e empreendeu uma digressão a Espanha.Maria João Pires grava, em exclusivo, para a Deutsche Grammophon desde 1989.
O Projecto de Belgais
Fundado por Maria João Pires numa região conhecida pelo nome de «Raia», a oeste de Portugal, o Centro de Belgais é a concretização de um projecto antigo, que corresponde a vários objectivos: proporcionar a artistas em formação ou consagrados um quadro excepcional e preservado, propício ao aprofundamento pessoal e a encontros estimulantes; desenvolver uma pedagogia da arte original e alternativa, fundada no respeito mútuo e na compreensão do ritmo de cada um; elaborar uma «filosofia» da educação; promover a difusão da cultura através da organização de espectáculos e concertos numa região pouco dotada neste plano; favorecer a criação artística através da oferta de estadias residenciais a jovens criadores; servir de local de reflexão e preparação para projectos artísticos de grande envergadura, ligados a uma difusão internacional.* * *À primeira vista, a propriedade de Belgais, localizada perto de Castelo Branco, caracteriza-se pelo isolamento: rodeada de colinas e oliveiras, a ampla casa aparece como um oásis no meio de uma província pouco povoada, muitas vezes inundada de calor no Verão. Longe de ser encarada como uma desvantagem, esta situação particular constitui indubitavelmente o principal trunfo do local: os residentes vivem aqui juntos, numa proximidade que jamais é transformada em promiscuidade, devido ao excelente conforto da propriedade, e podem deste modo concretizar trocas muitas vezes impossíveis noutros lugares. A proximidade tranquila da natureza, o silêncio e a ausência de agitação urbana prolongam os dias, impondo a cada um uma redefinição dos seus próprios objectivos, do seu próprio tempo, da sua própria maneira de apreender a prática artística. Segundo muitas opiniões, estar em Belgais constitui uma ocasião para um “pôr em causa” salutar, e leva a uma nova procura, mais preocupada em integrar elementos inéditos e exteriores.* * *Uma «filosofia» da educação.Desde a origem, o Centro de belgais caracteriza-se pela preocupação de contribuir para a reflexão contemporânea sobre a educação, e em particular sobre o papel que ela deve desempenhar numa sociedade alargada a todo o mundo, dominada pelo poder económico e pelos media. A fundação e o desenvolvimento de uma escola básica, situada na aldeia vizinha da Mata, constituíram deste modo uma etapa decisiva, uma vez que várias crianças beneficiam aqui de um ensino de grande qualidade, baseado na variedade dos conteúdos, na iniciação às artes e no desenvolvimento pessoal. A noção mais importante, neste ponto, é sem dúvida a de autonomia. Com efeito, Maria João Pires e os educadores que trabalham em Belgais estimam que o essencial não é a acumulação de competências (indissociavelmente ligada ao aparecimento súbito do individualismo e da competição), mas a aquisição progressiva de uma capacidade de pensar por si próprio. As práticas pedagógicas, face à complexidade do mundo social, são ainda com bastante frequência dominadas por uma lógica do ter, responsável pela concepção do conhecimento como «capital». As experiências levadas a cabo em Belgais esforçam-se por se basear, pelo contrário, numa lógica do ser, que possa proporcionar à criança o sentimento de constituir uma entidade por inteiro, para que não fique barricada e definida por um saber-fazer que depressa se torna num limite e numa prisão, mas que viva em relação permanente com o resto do mundo.A necessidade de respeitar a originalidade e a subjectividade de cada um, deste modo, não deve ser confundida com a sobrevalorização do indivíduo muitas vezes praticada nas sociedades ocidentais. A individualidade não é o individualismo, nem a «preocupação pelo eu» o egotismo: é precisamente a amálgama perigosa entre estas noções que explica e perpetua, nas relações humanas, uma cultura da violência e da agressão, onde sujeitos-fortalezas, à menor oportunidade, se erguem uns contra os outros. O período de aprendizagem deve corresponder para a criança ao despertar da capacidade de escuta, e deve proporcionar-lhe a possibilidade de se considerar como uma parte de um todo: única, mas rica de uma relação íntima, instintivamente solidária, com a comunidade dos humanos. O contributo do pensamento budista, neste ponto, é extremamente precioso, uma vez que convida a não sucumbir ao que se poderia chamar «armadilha da identidade», factor de intolerância e exclusão. Com efeito, desorientadas pelas exigências cada vez mais drásticas da vida contemporânea, muitas pessoas são tentadas a definir-se elas próprias, de forma intransigente, em torno de uma pertença: nacional, regional, política, social, etc… Porém, esta ultra-definição, tranquilizadora num primeiro momento, torna-se depressa num constrangimento alienante, artificial, exageradamente preciso, que fecha o indivíduo em vez de o libertar. A «armadilha» torna a fechar-se quando o homem de identidade sufoca o homem livre, condenando-o a revelar apenas uma caricatura de si próprio. A educação, tal como o centro de Belgais se esforça por concebê-la, deve constituir uma resistência a este processo: sem naturalmente resultar numa negação dela própria, a criança deve partir à descoberta da sua individualidade, preservando a disponibilidade para o outro, e recusando – tudo constitui o objecto de uma verdadeira autonomia – os discursos próprios para lhe impor uma carapaça rígida, tornando-se rapidamente, não tanto numa protecção, mas sobretudo num fardo. « Nihil humanum a me alienum puto » dizia o poeta Terêncio, indo ao encontro de uma das lições da filosofia budista: «Nada do que é humano me é estranho».* * *Múltiplas actividades. As actividades do centro, em correlação com os seus objectivos, são numerosas e variadas. Encontramos em primeiro lugar as estadias residenciais propostas aos jovens artistas do mundo inteiro, que vêm confrontar a sua experiência com práticas diferentes, muitas vezes bastante afastadas do ensino levado a cabo nas grandes instituições musicais. Cada ano, são organizados vários estágios, que, apesar da presença de artistas de renome, se distinguem radicalmente do espírito das «master classes». O piano, a música de câmara e a voz ocupam naturalmente um lugar importante, mas os participantes, durante a estadia em Belgais, são convidados a não ficarem centrados no trabalho musical. O objectivo é fazer com que se relacionem com a pedagogia geral do centro, tentar experiências reflexivas sobre eles próprios, meditar sobre a natureza dos seus desejos profundos, e abrir-se a actividades variadas. Podem desta forma assistir a conferências sobre as relações entre a literatura e a música, a filosofia ou a história da arte; envolver-se em ateliers de poesia que utilizam o poder evocador da natureza circundante; participar em sessões de iniciação à «Linguagem do corpo»; iniciar-se na meditação a partir da exploração das possibilidades da voz humana; etc… Cada um, ao receber a formação e o apoio artístico a que aspira, é desta forma levado a abrir-se a práticas desconhecidas e a outros campos do saber, sendo levado a colocar-se em questão enquanto indivíduo e enquanto artista. Desde a abertura do centro, foram muitos os encontros realizados em Belgais que já despoletaram colaborações ricas e duradoiras, misturando música e literatura, artes plásticas e expressão corporal: nasceram múltiplos espectáculos e textos, que são a prova viva da fertilidade da caminhada. * * *Paralelamente aos ateliers, a Granja de Belgais é igualmente um local de espectáculo: a casa possui, com efeito, não só uma sala coberta, capaz de acolher numerosos espectadores, mas também vários espaços exteriores: pátios, terrenos arranjados, onde se podem erguer palcos e cenários … Desde a sua fundação, o centro já organizou, não só inúmeros concertos de piano e de música de câmara, muitas vezes concebidos em torno de uma época ou de um tema, mas também concertos de música tradicional e popular, peças de teatro, espectáculos de dança, projecções de filmes, exposições de pintura e desenho, e mesmo uma ópera, Dido e Eneias de Purcell. Mesmo assim, trata-se para Maria João Pires e os artistas convidados de propor uma imagem alternativa do espectáculo: a originalidade do meio impõe adaptações permanentes e uma redefinição das práticas, o que envolve imaginação estética e criatividade. Para além disso, isto permite aumentar consideravelmente a oferta cultural da região de Castelo Branco: várias vezes por ano, durante dois ou três dias, consoante os espectáculos, a casa enche-se de gente que mora nos arredores e proveniente de todas as classes sociais, que encontra ali uma ocasião excepcional – e inesperada – para admirar artistas oriundos de todos os horizontes.A criação e a promoção de espectáculos vivos constitui, deste modo, uma das missões essenciais de Belgais. Recentemente, durante o Verão de 2005, este aspecto adquiriu uma dimensão ainda mais importante, uma vez que o centro serviu de local de criação e de ensaios para o grupo «Art Impressions», que ofereceu no Palácio Carlos V, em Granada, um espectáculo musico-teatral de cinco dias intitulado Transmissions. Este grupo experimental, fundado por Maria João Pires, é uma reunião «de geometria variável» de artistas interessados na correspondência entre as artes. Encontramos aqui a predominância constante da mesma «filosofia»: a procura espiritual através do desenvolvimento da prática artística, a preocupação humanista de subtrair a arte às práticas comerciais e alienantes dos negócios, a vontade de se comprometer, por si próprio e com o outro, numa busca sincera e autêntica.* * *Um último aspecto deve ser, finalmente, sublinhado, uma vez que preocupa particularmente Maria João Pires e toda a equipa, devendo ser relacionado com as concepções de educação já expostas: trata-se, naturalmente, do trabalho artístico dirigido às crianças. No processo geral de conquista da autonomia, o despertar da sensibilidade criadora é essencial, ao confrontar cada criança com uma projecção estética de si própria e ao colocá-la também como espectadora da produção do outro. Precisamente quando a iniciação às práticas artísticas desempenha um papel secundário (e até insignificante) no percurso de aprendizagem tradicional, o Centro de Belgais atribui-lhe uma função central: a arte actua como uma arma pacífica, uma «defesa» contra o processo de petrificação da identidade. Nesta perspectiva, paralelamente aos ateliers de artes plásticas e de teatro, a iniciativa mais importante de Belgais foi o desenvolvimento da prática musical e coral. A mesma rapidamente deu lugar à criação de um coro infantil de elevado nível, cuja actividade não tem cessado de se intensificar. Este coro, submetido a um ritmo de ensaios exigente e baseado em métodos de pedagogia musical originais, já actuou com frequência em concertos não só em Portugal como no estrangeiro, e suscita actualmente criações: é o caso de uma ópera, confiada ao jovem compositor Matan Porat, que está actualmente na fase de projecto.
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