terça-feira, 6 de março de 2007

Papisa Joana






Durante muitos séculos, a história da Papisa Joana havia sido reputada pelo próprio clero como incontestável; mas, com o andar dos tempos, os ultramontanos, compreendendo o escândalo e o ridículo que o reinado de uma mulher devia lançar sobre a Igreja, trataram de fábula digna do desprezo dos homens esclarecidos o pontificado dessa mulher célebre. Autores mais justiceiros defenderam, pelo contrário, a reputação de Joana e provaram com testemunhos, os mais autênticos, que a papisa havia ilustrado o seu reinado com o brilho das suas luzes e com a prática das virtudes cristãs. O fanático Barônio considera a papisa como um monstro que os ateus e os heréticos tinham evocado do inferno por sortilégios e malefícios; o supersticioso Florimundo Raxmond compara Joana a um segundo Hércules que teria sido enviado do céu para esmagar a Igreja romana, cujas abominações tinham excitado a cólera de Deus. Contudo, a papisa foi vitoriosamente defendida por um historiador inglês chamado Alexandre Cook; a sua memória foi vingada por ele das calúnias dos seus dois adversários, e o pontificado de Joana retomou o seu lugar na ordem cronológica da história dos papas. As longas disputas dos católicos e dos protestantes acerca dessa mulher célebre deram um atrativo poderoso à sua história, e somos obrigados a entrar em todos os detalhes de uma existência tão extraordinária. Eis aqui de que maneira o jesuíta Labbé, um dos inimigos da papisa, enviava o seu cartel de desafio aos cristãos reformados: "Dou o mais formal desmentido a todos os heréticos da França, da Inglaterra, da Holanda, da Alemanha, da Suíça e de todos os países da Terra, para que possam responder com a mais leve aparência de verdade a demonstração cronológica que publiquei contra a fábula que os heterodoxos narraram sobre a papisa Joana, fábula ímpia cujas bases destruí de um modo invencível..." Os protestantes, longe de ficarem intimidados com a impudência do jesuíta, refutaram vitoriosamente todas as alegações, demonstraram a falsidade das suas citações, destruíram todo o edifício das suas astúcias e das suas mentiras, e, apesar dos anátemas do padre Labbé, fizeram sair Joana dos espaços imaginários em que o fanatismo a tinha envolvido. No seu libelo, o padre Labbé acusava João Hus, Jerônimo de Praga, Wiclef, Lutero e Calvino de serem os inventores da história da papisa; mas provou-se-lhe que, tendo Joana subido à Santa Sede perto de seis séculos antes da aparição do primeiro desses, homens ilustres, era impossível que eles tivessem imaginado essa fábula; e que, em todo o caso, Mariano, que escrevia a vida da papisa mais de cinqüenta anos antes deles, não poderia tê-la copiado das suas obras. A história, cujas vistas morais se elevam acima dos interesses das seitas religiosas, deve, pois, ocupar-se em fazer triunfar a verdade sem se inquietar com as cóleras sacerdotais; e, além disso, a existência dessa mulher célebre não deve ferir, de modo algum, a dignidade da Santa Sede, porque Joana, no discurso do seu reinado, não imitou as astúcias, as traições a as crueldades dos pontífices do século. Crônicas contemporâneas estabelecem, com toda a evidência, a época do reinado de Joana; e as suas asserções merecem tanto mais crença que esses historiadores sendo prelados, padres e monges, todos zelosos partidários da Santa Sede, eram interessados em negar a aparição escandalosa de uma mulher no trono de S. Pedro. Verdade é que muitos autores do nono século não fazem menção dessa heroína; mas atribui-se, com justa razão, o seu silêncio à barbárie da época e ao embrutecimento do clero. Uma das provas mais incontestáveis da existência de Joana existe exatamente no decreto que foi publicado pela corte de Roma, proibindo que se colocasse Joana no catálogo dos papas. "Assim, acrescenta o sensato Launay, não é justo sustentar que o silêncio que se guardou sobre essa história, nos tempos que seguiram imediatamente o acontecimento, seja prejudicial à narrativa que mais tarde foi feita. É verdade que os eclesiásticos contemporâneos de Leão IV e de Bento III, por um zelo exagerado pela religião, não falaram nessa mulher notável; mas os seus sucessores, menos escrupulosos, descobriram afinal o mistério..." Mais de um século antes de Marianno escrever os manuscritos que deixou à abadia de Fulda, diferentes autores tinham já narrado muitas versões sobre o pontificado da papisa; mas esse sábio religioso esclareceu todas as dúvidas, e as suas crônicas foram aceitas como autênticas pelos eruditos conscienciosos, que estabelecem as verdades históricas sobre os testemunhos de homens cuja probidade e luzes são incontestáveis. E, com efeito, toda a gente concorda em reconhecer que Mariano era um escritor judicioso, imparcial e verídico; a sua reputação está tão bem, que a Inglaterra, a Escócia e a Alemanha reivindicaram a honra de serem a pátria dele; além disso, o seu caráter de sacerdote e a dedicação que mostrou sempre pela Santa Sede não permitem que se suspeite de parcialidade contra a Igreja católica. Mariano não era nem um ente fraco nem um visionário; pelo contrário, era muito esclarecido, muito instruído, cheio de firmeza, de religião e tinha dado provas incontestáveis da dedicação que consagrava à corte de Roma, defendendo com grande coragem o papa Gregório VII contra o imperador Henrique IV. Não é possível, pois, recusar a autoridade de um semelhante testemunho; de outro modo não existiria um único fato histórico ao abrigo das contestações, ou que se pudesse considerar como evidente. Por isso, os jesuítas, que têm procurado pôr em dúvida a existência da papisa, compreendendo a força que os escritos desse historiador davam aos seus adversários, quiseram acusar de inexatidão as cópias das obras de Mariano. Mabillon, sobretudo, pretende que existem exemplares nos quais não se trata da papisa; para refutar essa asserção, basta consultar os manuscritos das principais bibliotecas da Alemanha, da França, de Oxford e do Vaticano. Além disso, está provado que os manuscritos autógrafos do religioso, que foram conservados na França durante muitos séculos na biblioteca do Domo, contêm realmente a história da papisa. É igualmente impossível admitir que um homem do caráter de Mariano Scotus tivesse mencionado nas suas crônicas uma aventura tão singular, se não fosse verdadeira. Contudo, admitindo que fosse capaz de uma tal impostura, é provável que os papas, que governavam então a Igreja, tivessem guardado silêncio sobre uma tal impiedade? Gregório VII, o mais orgulhoso dos pontífices e o mais apaixonado pela pretensão à infalibilidade da Santa Sede, teria sofrido que um frade desonrasse a corte de Roma com tanta insolência? Victor III, Urbano II, Pascoal II, contemporâneos de Mariano, teriam deixado impune esse ultraje? Finalmente, os escritores eclesiásticos do seu século e, sobretudo, o célebre Alberico de Monte-Cassino, tão dedicado aos papas, teriam deixado de se levantar contra uma tal infâmia? Assim, segundo os testemunhos mais irrecusáveis e mais autênticos, está demonstrado que a papisa Joana existiu no nono século; que uma mulher ocupou a cadeira de S. Pedro, foi o vigário de Jesus Cristo na Terra e proclamada soberana pontífice de Roma!!! Uma mulher assentada na cadeira dos papas, ordenando-lhe a fronte a tiara e tendo nas mãos as chaves de S. Pedro é um acontecimento extraordinário, de que os fatos da história oferecem um único exemplo! E o que mais admira ainda o espírito não é o ter podido uma mulher elevar-se pelos seus talentos acima de todos os homens do seu século, pois que houve heroínas que comandaram exércitos, governaram impérios, encheram o mundo com a fama da sua glória, da sua sabedoria e das suas virtudes; mas que Joana, sem exércitos, sem tesouros, não tendo outro apoio senão a sua inteligência, fosse assaz hábil para enganar o clero romano e fazer com que lhe beijassem os pés os orgulhosos cardeais da cidade santa; é isso o que a coloca superior a todas as heroínas, porque nenhuma delas se aproxima do que há de maravilhoso numa mulher feita papa. Numa vida tão extraordinária como a de Joana, devemos mencionar todos os acontecimentos que nos foram transmitidos pelos historiadores e entrar no detalhe das ações dessa mulher notável. Eis a versão de Mariano Scotus sobre o nascimento da papisa: "Em princípios do nono século, Karl, o Grande, depois de ter subjugado os saxônios, empreendeu converter esses povos ao Cristianismo e pediu à Inglaterra padres eruditos que o pudessem auxiliar nos seus projetos. No numero dos professores que passaram à Alemanha, contava-se um padre inglês acompanhado de uma menina que roubara à sua família para ocultar o seu estado de gravidez. Os dois amantes foram obrigados a interromper a sua viagem e a parar em Mayence onde, em breve, a jovem inglesa deu à luz uma filha, cujas aventuras deviam ocupar um dia os séculos futuros; essa criança era Joana." Não se conhece com exatidão o nome que ela usou na sua infância: a filha do padre inglês é igualmente chamada Agnes por alguns autores, Gerberta ou Gilberta por outros, e finalmente Joana pelo maior número. O jesuíta Sevarius pretende que lhe chamavam também Isabel, Margarida, Dorotéia e Justa. Não estamos melhor instruídos acerca do sobrenome que ela adotou; asseguram uns que ela acrescentava ao seu nome a designação de Inglês; querem outros juntá-lo ao nome de Gerberta, e um autor do décimo quarto século chama-lhe Magamma na sua crônica, para exprimir, certamente, a ousadia e a temeridade de Joana, à imitação de Ovídio, que se serve da expressão "magnanimus Phaethon". Esses mesmos autores apresentam menos contradições relativamente ao lugar do seu nascimento; pretendem alguns que ela nascera na Grã-Bretanha, outros designam Mayence, outros finalmente Engelkein, cidade do palatinado, célebre pelo nascimento de Carlos Magno; mas o maior número reconhece que Joana era de origem inglesa, que foi educada em Mayence e que nasceu em Eugelkein, aldeia situada na vizinhança daquela cidade. Joana tornara-se uma formosa jovens, e o seu espírito, cultivado pelos cuidados de um pai muito instruído, tomara um desenvolvimento tal, que ela admirava pelas suas respostas todos os doutores que se aproximavam dela. A admiração que ela inspirava aumentou ainda o seu ardor pela ciência, e aos 12 anos a sua instrução igualava-se à dos homens mais distintos do palatinado. Todavia, quando chegou à idade em que as mulheres começam a amar, a ciência foi insuficiente para satisfazer os desejos daquela imaginação ardente, e o amor mudou os destinos de Joana. Um jovem estudante de família inglesa e frade da abadia de Fulda foi seduzido pela sua beleza e apaixonou-se loucamente por ela. Se ele a amou com extremo, diz a crônica, Joana, pelo seu lado, não foi nem insensível nem cruel. Vencida pelos protestos, arrastada pelas inspirações do seu coração, Joana consentiu em fugir da casa paterna com o seu amante; deixou o seu nome verdadeiro, vestiu-se de homem e seguiu o jovem abade para a abadia de Fulda. O superior, enganado com aquele disfarce, recebeu Joana no seu mosteiro e colocou-a sob a direção do sábio Rabano Mauro. Algum tempo depois, o constrangimento em que se achavam os dois amantes fez-lhes tomar a determinação de saírem do convento e irem para a Inglaterra continuar os seus estudos. Em breve, tornaram-se os maiores eruditos da Grã-Bretanha, e em seguida resolveram visitar novos países, a fim de observarem os costumes dos diferentes povos e estudar-lhes as línguas. Em primeiro lugar, visitaram a França, onde Joana, debaixo sempre do hábito monacal, disputou com os doutores franceses e excitou a admiração dos personagens célebres da época, a famosa duquesa Setimânia, Santo Anscário, o frade Bertran e o abade Lopo de Ferriére. Depois dessa primeira viagem, os dois amantes empreenderam visitar a Grécia; atravessaram as Gálias e embarcaram em Marselha num navio que os conduziu à capital dos helenos, a antiga Atenas que é o foco mais ardente das luzes, o centro das ciências e das belas-letras, possuindo, ainda, escolas e academias, excitada em todo o universo pela eloqüência dos seus professores e pelo profundo saber dos seus astrônomos e dos seus físicos. Quando Joana chegou a esse magnífico país, tinha 20 anos e achava-se em todo esplendor da sua beleza; mas o hábito monástico ocultava o seu sexo a todos os olhares, e o seu rosto, empalidecido pelas vigílias e pelo trabalho, dava-lhe mais ares de um formoso adolescente do que de uma mulher. Durante dez anos, os dois ingleses viveram sob o formoso céu da Grécia, cercados de todas as ilustrações científicas e prosseguindo os seus estudos em filosofia, teologia, letras divinas e humanas, artes e histórias sagradas e profana. Joana aprofundara, compreendera e explicara tudo; e juntando a conhecimentos universais uma eloqüência prodigiosa, enchia de espanto aqueles que eram admitidos a ouvi-la. No meio dos seus triunfos, Joana foi ferida por um golpe terrível; o companheiro dos seus trabalhos, o seu amante estremecido, aquele que havia muitos anos não se separara dela, foi atacado por uma enfermidade súbita e morreu em poucas horas, deixando a desditosa só e abandonada na Terra. Joana tirou do seu próprio desespero uma nova coragem; venceu a sua aflição e resolveu sair da Grécia. Além disso, era-lhe impossível ocultar por mais tempo o seu sexo num país onde os homens usavam as barbas crescidas, e escolheu Roma para lugar do seu retiro, porque o uso ordenava aos homens raparem a barba. Talvez que não fosse esse unicamente o motivo que determinou a sua preferência pela cidade santa; o estado de agitação em que se achava então aquela capital do mundo cristão podia oferecer à sua ambição um teatro mais vasto do que a Grécia. Logo que chegou a cidade santa, Joana fez-se admitir na academia à que chamavam a escola dos gregos, para ensinar as sete artes liberais e, particularmente, a retórica. Santo Agostinho tornara já muito ilustre aquela escola; Joana aumentou-lhe a reputação. Não somente continuou os seus cursos ordinários, como também introduziu cursos de ciências abstratas que duravam três anos, e nos quais um imenso auditório admirava o seu prodigioso saber. As suas lições, os seus discursos e mesmo os seus improvisos eram feitos com uma eloqüência tão arrebatadora, que o jovem professor era citado como o mais belo gênio do século, e que, na sua admiração, os romanos lhe conferiram o título de príncipe dos sábios. Os senhores, os padres, os monges e, sobretudo, os doutores honravam-se de serem seus discípulos. "O seu procedimento era tão recomendável como os seus talentos; a modéstia dos seus discursos e das suas maneiras, a regularidade dos seus costumes, a sua piedade, diz Mariano, brilhavam como uma luz aos olhos dos homens. Todos esses exteriores eram uma máscara hipócrita sob a qual Joana ocultava projetos ambiciosos e culpados; por isso, no tempo em que a saúde vacilante de Leão IV permitia aos padres forjarem intrigas e cabalas, um partido poderoso declarou-se por ela, e publicou altamente pelas ruas da cidade que só ela era digna de ocupar o trono de S. Pedro." E, com efeito, depois da morte do papa, os cardeais, os diáconos, o clero e o povo elegeram-na, por unanimidade para governar a Igreja de Roma! Joana foi ordenada na presença dos comissários do imperador, na basílica de S. Pedro, por três bispos; em seguida, tendo revestido as vestes pontificais, dirigiu-se acompanhada de um imenso cortejo ao palácio patriarcal e assentou-se na cadeira apostólica. Por muito tempo, os padres discutiram a seguinte e importante questão: "Joana foi elevada ao santo ministério por uma arte diabólica ou por uma direção particular da Providência? Uns pretendem que a Igreja deve sentir uma grande humilhação por ter sido governada por uma mulher. Outros sustentam, pelo contrário, que a elevação de Joana à Santa Sede, longe de ser um escândalo, devia ser glorificada como um milagre de Deus, que permitira aos romanos procedessem à sua eleição, para revelar que haviam sido arrastados pela influência maravilhosa do Espírito Santo." Joana, elevada à suprema dignidade da Igreja, exerceu a autoridade infalível de vigário de Jesus Cristo com tão grande sabedoria que se tornava a admiração de toda a cristandade. Conferiu ordens sagradas aos prelados, aos padres e aos diáconos; consagrou altares e basílicas; administrou os sacramentos aos fiéis, deu os pés a beijar aos arcebispos, aos abades e aos príncipes; finalmente, desempenhou com honra todos os deveres dos pontífices. Compôs prefácios de missas e grande número de cânones, que foram interditos pelos seus sucessores; dirigiu com grande habilidade os negócios políticos da corte de Roma, e foi por conselhos seus que o imperador Lotário, já muito velho, decidindo-se a abraçar a vida monástica, retirou-se para a abadia de Prum, a fim de fazer penitência dos crimes com que manchara a sua longa carreira. Em favor do novo monge, a papisa concedeu à sua abadia o privilégio de uma prescrição de cem anos, cujo ato é mencionado na coleção de Graciano. O império passou, em seguida, para Luiz II, que recebeu a coroa imperial das mãos de Joana. Contudo, essa mulher que inspirava um tão grande respeito aos soberanos da Terra, que subjugava os povos às suas leis, que atraíra a veneração do universo inteiro pela superioridade das suas luzes e pela pureza da sua vida, essa mulher vai em breve quebrar o pedestal da sua grandeza e espantar Roma com o espetáculo de uma queda terrível! Algumas crônicas religiosas referem que esse ano de 854 foi assinalado por fenômenos milagrosos em todos os países da cristandade. "A terra tremeu em muitos reinos; uma chuva de sangue caiu na cidade de Bresseneu ou Bresnau. Na França, nuvens de gafanhotos monstruosos, armados de dentes compridos e acerados, devoraram todas as colheitas das províncias que atravessaram; em seguida, impelidos por um vento sul para o mar, entre o Havre e Calais, foram todos submergidos; mas os seus restos impuros lançados na praia espalharam no ar uma tal infecção, que engendrou uma epidemia a qual matou uma grande parte dos habitantes. Na Espanha, o corpo de S.Vicente, que fora arrancado do seu túmulo por um frade sacrílego que o queria vender aos pedaços, voltou, uma noite, da cidade de Valência, para uma pequena aldeia próxima de Montauban, e parou nos degraus da igreja, pedindo em voz alta para se recolher no seu relicário. Todos esses sinais, acrescenta o piedoso legendário, anunciavam infalivelmente a abominação que devia manchar a cadeira evangélica." Joana, entregue a estudos sérios, conservara um procedimento exemplar depois da morte do seu amante. No princípio do seu pontificado, praticou as virtudes que lhe haviam merecido o respeito e a afeição de todos os romanos; mas depois, ou por propensão irresistível, ou porque uma coroa tenha o privilégio de perverter os mais belos caráteres, Joana entregou-se aos gozos do poder soberano e quis partilhá-los com um homem digno do seu amor. Escolheu um amante, assegurou-se da sua discrição, encheu-o de honras e de riquezas e guardou tão bem o segredo das suas relações, que só por conjecturas se pôde descobrir o favorito da papisa. Alguns autores pretendem que ele era camareiro, outros asseveram que era conselheiro ou capelão; o maior número afirma que era cardeal de uma igreja de Roma. Todavia, o mistério dos seus amores permaneceria coberto por um véu impenetrável, sem a catástrofe terrível que pôs termo às suas noites de voluptuosidade. A natureza zombava de todas as previsões dos dois amantes: Joana estava grávida! Conta-se que um dia, enquanto presidia ao consistório, foi trazido à sua presença um endemoninhado para ser exorcizado. Depois das cerimônias do uso, perguntou ela ao demônio em que tempo queria ele sair do corpo daquele possesso. O espírito das trevas respondeu imediatamente: "Eu vo-lo direi, quando vós, que sois pontífice e o pai dos pais, deixardes ver ao clero e ao povo de Roma uma criança nascida de uma papisa." Joana, assustada com aquela revelação, apressou-se em terminar o conselho e retirou-se para o seu palácio, mas apenas se recolhera aos seus aposentos interiores, o demônio apresentou-se diante dela e lhe disse: "Santíssimo Padre, depois do vosso parto, pertencer-me-eis em corpo e alma; e apoderar-me-ei de vós para que vos queimeis comigo no fogo eterno." Essa ameaça terrível, em vez de desesperar a papisa, reanimou o seu espírito e fez nascer no seu coração a esperança de acalmar a cólera divina com um arrependimento profundo. Impuseram-se rudes penitenciais, cingiu os membros delicados com um cilício grosseiro e dormiu sobre as cinzas; finalmente, os seus remorsos foram tão ferventes que Deus, tocado das suas lágrimas, enviou-lhe uma visão. Apareceu-lhe um anjo e ofereceu-lhe, em nome de Jesus Cristo, para castigo do seu crime, ser entregue às chamas eternas ou ser reconhecida como mulher diante de todo o povo de Roma. Joana aceitou o opróbrio e esperou corajosamente o castigo que o seu procedimento sacrílego havia merecido. Na época das rogações, que corresponde à festa anual que os romanos chamavam Ambarralia e que era celebrada com uma procissão solene, a papisa, segundo o uso estabelecido, montou a cavalo e dirigiu-se à igreja de S. Pedro, revestida com os ornamentos pontificais, precedida pela cruz e pelas bandeiras sagradas, acompanhada dos metropolitanos, dos bispos, dos cardeais, dos padres, dos diáconos, dos senhores, dos magistrados e de uma grande multidão de povo; em seguida, saiu da catedral com aquele séqüito pomposo para se dirigir à basílica de S. João de Latrão. Mas, tendo chegado a uma praça pública, entre a basílica de S. Clemente e o anfiteatro de Domiciano, chamado Coliseu, assaltaram-na as dores do parto com tal violência, que caiu do cavalo. A infeliz torcia-se pelo chão com gemidos horríveis, até que, conseguindo rasgar os ornamentos sagrados que a cobriam, a papisa Joana, no meio de convulsões tremendas e na presença de uma grande multidão, deu à luz uma criança!!! A confusão e a desordem que essa aventura escandalosa causou entre o povo exasperaram a tal ponto os padres que estes impediram que a socorressem, e, sem consideração pelos sofrimentos atrozes que a torturavam, cercaram-na como que para a ocultar a todos os olhares e ameaçaram-na com a sua vingança. Joana não pôde suportar o excesso da sua humilhação e a vergonha de ter sido vista por todo o povo numa situação tão terrível; fez um esforço supremo para dizer o último adeus ao cardeal, que a amparava nos braços, e a sua alma voou para o céu. Assim morreu a papisa Joana, no dia das rogações, em 855, depois de ter governado a Igreja de Roma durante mais de dois anos. A criança foi sufocada pelos padres que cercavam a mãe; contudo, os romanos, em memória do respeito e da dedicação que durante tanto tempo haviam consagrado a Joana, consentiram em prestar-lhe os últimos deveres, mas sem pompa, e colocaram o cadáver da criança no mesmo túmulo. Joana foi enterrada não no recinto de uma basílica, mas no mesmo lugar onde sucedera aquele acontecimento trágico. Ali se edificou uma capela, ornada com uma estátua de mármore representando a papisa vestida com os hábitos sacerdotais; com a tiara na cabeça e tendo nos braços uma criança. O pontífice Bento III mandou quebrar essa estátua em fins do seu reinado, mas as ruínas da capela viam-se ainda em Roma no décimo quinto século. Grande número de visionários preocuparam-se gravemente em investigar o castigo que Deus infringira à papisa depois da sua morte; uns consideraram a ignomínia dos seus últimos momentos como uma expiação suficiente, o qual estava de acordo, além disso, com a opinião vulgar de que os papas, qualquer que fossem os seus crimes, não podiam ser condenados. Outros, menos indulgentes que os primeiros, afirmam que Joana foi condenada por toda a eternidade a ficar suspensa de um dos lados das portas do inferno, e o seu amante do outro lado, sem nunca se poderem reunir. O clero de Roma, ferido na sua dignidade e cheio de vergonha por aquele acontecimento singular, publicou um decreto proibindo aos pontífices atravessarem a praça pública, onde tivera lugar o escândalo; por isso, depois dessa época, no dia das rogações, a procissão, que devia partir da basílica de S. Pedro para se dirigir à igreja de S. João de Latrão, evitava aquele lugar abominável, situado no meio do seu caminho, e faziam um longo rodeio. Essas, precauções eram suficientes para manchar a memória da papisa; mas o clero, querendo impedir que um semelhante escândalo pudesse jamais se renovar, imaginou, para entronização dos papas, um uso singular e maravilhosamente apropriado à circunstância, o qual teve o nome da cadeira furada. O sucessor de Joana foi o primeiro que se submeteu a essa prova, na qual se empregava o seguinte cerimonial: Logo que era eleito o pontífice, conduziam-no ao palácio de Latrão para ser consagrado solenemente. Em primeiro lugar, assentava-se numa cadeira de mármore branco, colocada no pórtico da igreja, entre as duas portas de honra; essa cadeira era, porém, furada, e deram-lhe esse nome porque o Santo Padre, ao levantar-se dela, entoava o seguinte versículo do Salmo 113: "Deus eleva do pó o humilde, para o fazer assentar-se acima dos príncipes!" Em seguida, os grandes dignitários da Igreja davam a mão ao papa e conduziam-no à capela de S. Silvestre, onde se achava a outra cadeira de pórfiro, furada no fundo, na qual faziam assentar o pontífice. Os primeiros historiadores eclesiásticos não fizeram menção nunca de uma só cadeira daquela natureza, enquanto os cronistas mais estimados falam sempre em duas cadeiras furadas que designam como sendo do mesmo tamanho, de forma semelhante, uma e outra de um estilo muito antigo, sem ornatos nem almofadas. Antes da consagração, os bispos e os cardeais faziam colocar o papa sobre essa segunda cadeira, meio estendido, com as pernas separadas, e permanecia exposto nessa posição, com os hábitos pontificais entreabertos, para mostrar aos assistentes às provas da sua virilidade; finalmente, aproximavam-se dele dois diáconos, asseguravam-se pelo tato que os olhos não eram iludidos por aparência enganadora e davam disso testemunho aos assistentes gritando em voz alta: "Temos um papa!" A assembléia respondia: "Deo gratias" em sinal de reconhecimento e de alegria. Então os padres vinham prostrar-se diante do pontífice, levantavam-no da cadeira, cingiam-lhe os rins com cinto de seda, beijavam-lhe os pés e procediam a entronização. A cerimônia terminava sempre por um esplêndido festim e por uma distribuição de dinheiro aos frades e às religiosas. É mencionada a cerimônia das cadeiras furadas na consagração de Honório III, em 1061; na de Pascoal II em 1099; na de Urbano VI, eleito no ano de 1378. Alexandre VI, reconhecido publicamente em Roma pelo pai dos cinco filhos de Rosa Vanozza, sua amante, foi submetido à mesma prova. Finalmente subsistiu ela até o décimo sexto século, e Cressus, mestre de cerimônias de Leão X, refere exatamente no jornal de Paris todas as formalidades da prova das cadeiras furadas a que o pontífice foi submetido. Depois de Leão, deixou ela de ser praticada, ou porque os padres compreenderam o ridículo de um uso tão inconveniente, ou porque as luzes do século não permitiam mais um espetáculo que ofendia a moral pública. As cadeiras furadas, que não eram necessárias, foram tiradas do lugar onde estavam colocadas e levadas para a galeria do palácio de Latrão que conduz à capela. O padre Mabillon, na sua viagem de Itália em 1685, fez a descrição dessas duas cadeiras, que examinou com a maior atenção, e afirma que eram de pórfiro, e semelhantes na fórmula a uma cadeira para enfermos. Os ultramontanos, confundidos pelos documentos autênticos da história e não podendo negar a existência da papisa Joana, consideraram toda a duração do seu pontificado como uma vagatura da Santa Sede, e fazem suceder a Leão IV o papa Bento III, sobre o pretexto de que uma mulher não pode desempenhar as funções sacerdotais, administrar os sacramentos nem conferir ordens sagradas. Mais de 30 autores eclesiásticos alegam esse motivo para não contarem Joana no número dos papas; mas um fato essencialmente notado vem dar um desmentido formal à sua opinião. Em meados do XV século, tendo sido restaurada a catedral de Siena por ordem do príncipe, mandou-se esculturar em mármore os bustos de todos'os papas até Pio II, que reinava então, e colocou-se no seu lugar, entre Leão IV e Bento III, o retrato da papisa, com esse nome: "João VIII, papa mulher!" Esse fato importante autorizaria, pois, a contar Joana como o 1089 pontífice que tivesse ornado'a Igreja, se o uso não fosse mais potente que a verdade. Contudo, nem por isso fica menos provado que o reinado da papisa é autêntico, em que uma mulher ocupou gloriosamente a cadeira sagrada dos pontífices de Roma. Alguns neo-católicos rejeitam ainda a verdade e recusam-se a admitir a autenticidade de todas essas provas, sob pretexto de que Deus não poderia permitir que a cadeira de S. Pedro, fundada pelo próprio Jesus Cristo, fosse assim ocupada por uma mulher impudica. Mas então perguntaremos nós como é que Deus pode sofrer as profanações sacrílegas e as abominações dos bispos de Roma! Não permitiu o Cristo que a Santa Sede fosse manchada por papas heréticos, apóstatas, incestuosos e assassinos? Não era ariano S. Clemente; Anastácio, nestoriano; Honório, monotelista; João XXIII, ateu, e Silvestre II não dizia que vendera a sua alma ao demônio para ser papa? Barônio, esse defensor zeloso da tiara, é o próprio a dizer que Bonifácio VI e Estevão VII eram celerados infames, monstros abomináveis, que encheram a casa de Deus com os seus crimes, e acusa-os de terem excedido tudo quanto os mais cruéis perseguidores da Igreja fizeram sofrer aos fiéis. Genebrardo, arcebispo de Aix, afirma que, durante perto de dois séculos, a Santa Sede foi ocupada por papas de um desregramento tão espantoso que eram dignos de serem chamados apostáticos e não apostólicos, e acrescenta que as mulheres governavam a Itália e que a cadeira pontifical se transformara numa roca. E, com efeito, as cortesãs Teodora e Marósia, monstros de lubricidade, dispunham, segundo o seu capricho, do lugar de vigário de Jesus Cristo; colocavam no trono de S. Pedro os seus amantes ou os seus bastardos, e os cronistas referem sobre essas mulheres fatos tão singulares, tão monstruosos, e narram libertinagens tão revoltantes, que se torna impossível traduzi-los na nossa história. Desse modo, visto que a clemência de Deus tolerou todas essas abominações na Santa Sede, pode igualmente permitir p reinado de uma papisa. Além disso, Joana não é nem a primeira e nem a única mulher que revestiu o hábito sacerdotal; Santa Tecla, disfarçada em trajes eclesiásticos, acompanhava S. Paulo em todas as suas viagens; uma cortesã chamada Margarida disfarçou-se de padre e entrou para um convento de homens, onde tomou o nome de Frei Pelágio; Eugênia, filha do célebre Filipe, governador de Alexandria no reinado do imperador Galiano, dirigia um convento de frades, e não descobriu o seu sexo senão para se desculpar de uma acusação de sedução que lhe fora intentada por uma jovem. A crônica da Lombardia, composta por um monge de Monte Cassino, refere igualmente, segundo um padre chamado Heremberto, que escrevia trinta anos depois da morte de Leão IV, a história de uma mulher que fora patriarca de Constantinopla. "Um príncipe de Benevento, chamado Archiso, diz ele, teve uma revelação divina na qual um anjo o advertiu que o patriarca que ocupava então a sede de Constantinopla era uma mulher. O príncipe apressou-se em instruir o imperador Basílio, e o falso patriarca, depois de ter sido despojado de todas as suas vestes diante do clero de Santa Sofia, foi reconhecido por uma mulher, expulso vergonhosamente da Igreja e encerrado num convento de religiosas." Depois da narrativa de todos esses fatos, que foram conservados nas lendas para edificação dos fiéis, não deveriam confessar os padres que Deus permitiu o pontificado da papisa para abaixar o orgulho da Santa Sede e para mostrar que os vigários do Cristo não são infalíveis? Além disso, a história de Joana não se aproxima da história da Virgem Maria? A mãe do Cristo não concebeu e não deu à luz sem deixar de ser virgem, e não governou sobre o próprio Deus, por isso que a Escritura nos diz: "Jesus Cristo era submisso à sua mãe." Se, pois, o criador de todas as coisas não desdenhou obedecer a uma mulher, por que razão queriam ser os seus ministros mais orgulhosos do que um Deus todo poderoso e recusarem-se a curvar a fronte diante de uma papisa? Além disso, até o sétimo século, os fiéis tinham reconhecido sacerdotisas, porque os atos do concilio de Calcedônia dizem formalmente que as mulheres podem receber as ordens do sacerdócio e serem sagradas solenemente como os leigos. S. Clemente, sucessor imediato dos apóstolos de Jesus, fala detalhadamente numa epístola sobre as funções das sacerdotisas: diz que devem celebrar os santos mistérios, pregar o Evangelho aos homens e ás mulheres e despi-los para ungi-los em todo o corpo, na cerimônia do batismo. Aton, bispo de Vercelli, refere nas suas obras que as sacerdotisas, na Igreja primitiva, presidiam nos templos, faziam instruções religiosas e filosóficas e que tinham debaixo das suas ordens diaconisas que as serviam, como os diáconos faziam aos padres. Santo Atanásio, bispo de Alexandria, e S. Cipriano explicam-se mais detalhadamente ainda acerca dessas mulheres; queixam-se de que muitas dentre elas, afastando-se das regras que lhes eram impostas, praticavam a garridice, empregavam os enfeites, os ornatos, pintavam o rosto, não tinham nem reserva nem pudor nas suas palavras, freqüentavam os banhos públicos e banhavam-se completamente nuas, de mistura com padres e jovens diáconos. Não era, pois, um fato novo na Igreja a elevação de uma mulher ao sacerdócio, quando apareceu a papisa Joana: muitas outras mulheres antes dela haviam sido consagradas sacerdotisas, recebido o dom do Espírito Santo e exercido as funções eclesiásticas. Por que razões procuram os adoradores da púrpura romana contestar a exatidão desses fatos históricos e irrecusáveis? Porque querem aniquilar até a própria recordação da existência de uma mulher celebre? A razão é simples: a majestade do sacerdócio, a infalibilidade pontifical, as pretensões da Santa Sede, a dominação universal, todo esse edifício de superstição e de idolatrias sobre as quais está colocada a cadeira de S. Pedro desaba diante de uma mulher papisa!!!



Diversos textos da Idade Média falam de Joana, uma mulher que contrariando todas as leis, teria ocupado o cargo máximo da Igreja Católica. Por não ter sido confirmado, este fato foi abandonado por todos, nos deixando em dúvida quanto à sua veracidade. Diversos documentos afirmam que Joana realmente existiu, tendo nascido na cidade de Mainz, na Alemanha, filha de um casal inglês que estava morando ali, na época. Quando adulta, Joana conheceu um monge e
por ele se apaixonou. O amor foi correspondido, e deixaram a Alemanha, partindo para a Grécia, onde ela teve acesso a seus estudos. O casal permaneceu em Atenas durante três anos, e depois mudaram-se para Roma. Por viver com um religioso, Joana achou melhor se disfarçar, vestindo roupas masculinas. E assim o fez, adotando o nome de Johannes Angelicus.Em Roma, Joana conseguiu ser nomeada cardeal, e em virtude de sua notável inteligência, foi finalmente eleita papa. A vida amorosa de Joana continuou e acabou engravidando. Durante uma procissão, quando já estava em avançado estado de gestação, e ao passar por uma estreita viela entre o Coliseu e a Igreja de São Clemente, deu à luz em frente ao povo que acompanhava o cortejo, escandalizando a todos. Depois disso, amarraram-na em um cavalo, arrastaram-na para fora de Roma, apedrejando-a até a morte. Lenda ou não, entre 1377 e 1404, as procissões papais evitavam passar pelo mesmo caminho feito por Joana. Segundo um cronista do século XIII, Joana ocupou o cargo durante dois ou três anos, entre o Papa Leão IV e o Papa Benedito III (anos de 850 e 1100). Se tudo isso não passa de uma lenda, pode-se então perguntar: porque teria surgido a história de uma mulher que ocupou a posição de um Papa? Existem duas possibilidades: uma, é a de que o eunuco chamado Nicetas, por ser castrado, não foi eleito, acabando sendo chamado de "mulher". A outra hipótese é que, no século XIII, o papado tinha um grande número de inimigos, especialmente entre a Ordem dos Franciscanos ou Dominicanos. O descontentamento provocou restrições a diversos privilégios que eles poderiam ter. Para prejudicar a instituição, teriam espalhado verbalmente a história da Papisa. Lenda ou realidade, esta seqüência de fatos está caracterizada na segunda lâmina do Tarot, "a Papisa", considerada pelas escolas esotéricas como a personificação da sabedoria, do conhecimento, e detentora da chave dos grandes mistérios.
Monica Buonfiglio

Papisa Joana
Eu tenho um livrinho de 1966 chamado “Pequeno Dicionário Histórico e Elucidativo de Assuntos Pouco Vulgares” que parece ter saído do século XVIII. É de um intelectual brasileiro ufanista, talvez octogenário, fã de Rui Barbosa e com cara de ter parado no século anterior (vide título da obra). É um livrinho muito saboroso, cheio de erros de composição e com uma ortografia ultrapassada que trata de… bem… “assuntos poucos vulgares” como Ovo de Galo, palavras diferentes do português, uma mulher que se tornou Papa e assuntos afins. A entrada sobre “top less” é fantástica! Algo como “não vi e não quero ver mas em Paris é a última moda, a que ponto chegaremos?”.
Uma das minhas entradas preferidas é sobre a “Papisa Joana”. É uma história/lenda cuja primeira referência encontra-se no século XIII nos escritos de dois cronistas aproximadamente da mesma época, o polonês Martin de Opava (ou Martin Polonus ou Martin von Trappau) que escreveu “Chronicon Pontificum et Imperatum” e Jean de Mailly em sua obra “Chronica Universalis Mettensis”. Antes de me estender sobre o assunto vou colocar os trechos das duas obras(infelizmente não fui capaz de encontrar os originais em latim e fiz uma tradução ligeira a partir do inglês). Primeiro, Martin de Opava:Após… Leão, João Anglicus [João da Inglaterra], nascido em Mainz, foi papa por dois anos, sete meses e quatro dias e morreu em Roma, após o que houve um espaço de um mês no papado. É dito que João era uma mulher, que fora enquanto menina levada a Atenas vestida em roupas de homem por um amante. Lá ela se tornou proficiente em diversos ramos de conhecimento até que não tinha mais concorrentes, e mais tarde em Roma ela ensionou as artes liberais e teve grandes mestres entre seus estudantes e audiência. Um grande respeito sobre sua vida e seus conhecimentos surgiu na cidade, e ela foi a escolha de todos para papa. Enquanto papa, contudo, engravidou de seu companheiro. Devido a ignorância do tempo exato de quando o nascimento era esperado ela deu à luz durante uma procissão de São Pedro até Lateran, em uma estreita via entre o Coliseu e a igreja de São Clemente. Após sua morte é dito que foi enterrada no mesmo local. O Senhor papa sempre vira antes desta rua e é acreditado por muitos que é devido ao desgostoso evento. Nem ela é colocada entre a lista dos sagrados pontífices, tanto devido ao seu sexo feminino e quanto à vileza do assunto.
A seguir Jean de Mailly:
Relativo a um determinado papa ou ainda um papa mulher, que não é listado entre os papas ou bispos de Roma, por ela ser uma mulher que disfarçou-se como homem e tornou-se, por sua personalidade e talentos, um secretário da cúria, depois um cardeal e finalmente papa. Um dia, enquanto montando a cavalo, ela deu luz a um filho. Imediatamente ela foi amarrada pelos pé à cauda de um cavalo, pela justiça Romana, arrestada e apedrejada pelo povo por três quilômetors. E foi enterrada onde morreu e no local foi escrito: “Petre, Pater Patrum, Papisse Prodito Partum” [Oh Pedro, Pai dos Pais, Abandonai o Parto do Papa Mulher”]. Ao mesmo tempo, o jejum de quatro dias chamado de “jejum do papa mulher” foi estabelecido.De acordo com o primeiro trecho a Papisa teria assumido o trono pontifício no ano 855, no segundo, em 1099. De qualquer forma atualmente é aceito que a história é uma invenção do século XIII para desmoralizar o papado, mas até o século XVII era bastante conhecida e difundida. A partir desta história surgiram outra bastante interessantes como: Papisa Joana ganhou um nome (em um escrito do século XIV), Agnes. O segundo arcano maior do Tarô - na verdade “aparecido” no século XV, por mais que os crentes insistam em origens exotéricas distantes - representava a Papisa, nome mudado (não de todo) a partir do século XIX para “Sacerdotisa” ou “Hierofante”, mas deixo o Tarô pra um outro dia, por enquanto vou comentar mais sobre dois detalhes: uma falha na numeração dos Papas João e a “Cadeira com Furo”
Um fato interessante é que não existe nenhum Papa João XX, a numeração passa direto de João XIX para João XXI. O Papa João XXI (que deveria ser João XX) renumerou-se em 1276 tendo em vista um certo Papa João não computado entre o João XIV e XV, durante o século X e que atualmente é reconhecido como tendo sido o Antipapa Bonifácio VII. Confuso, ahn? É sim, e essa confusão toda de numerozinhos romanos, nomes repetidos, Papas e Antipapas ajudou a dar fôlego à lenda da Papisa Joana. A tempo: um antipapa é alguém que declara-se papa frente a uma eleição controversa ou disputada, e que no final das contas acaba não sendo o Papa mesmo. Há 42 Antipapas históricos mas sempre aparece um ou outro se declarando papa, sendo os mais recentes uma meia dúzia de “Pedro II” e um italiano Roberto Carnevale se declarando “Papa João XX” agora em 2005.
A “Cadeira com Furo” ou “Trono Perfurado”, do qual eu consegui obter uma foto do último exemplar restante (está no Museu do Vaticano) é dito ter sido usado a partir da Papisa Joana para se garantir que o Papa eleito tinha seus apetrechos de homem antes de ser oficialmente declarado Papa. A história é interessante porém este tipo de Trono precede a história da Papisa Joana por vários séculos. Aliás precede a história do próprio cristianismo. Sua utilidade é contestada como sendo ou uma privada (coloca o piniquinho ali embaixo) ou mesmo uma cadeira de parto.
De qualquer forma é interessante verificar como estes detalhes foram apropriados pela lenda e, como à época as informações eram escassas e imprecisas a desinformação, as lendas e os erros eram comuns. Enfim, está aí a história da Papisa Joana. Espero concluir algo sobre ***** ***** sem mais tardar (censurado de forma a não criar expectativas).



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