sábado, 3 de março de 2007

Lídia Jorge


O seu primeiro romance O Dia dos Prodígios, publicado em 1980, reúne um consenso bastante positivo. Seguiram-se O Cais das Merendas (1982) e Notícia da Cidade Silvestre (1984). Ambos foram distinguidos com o Prémio Literário do Município de Lisboa. Em 1988, surge com A Costa dos Murmúrios, e depois em 1992 com A Última Dona. Em 1992, lança-se também no conto com A Instrumentalina; voltaria ao conto em 1997 em Marido e outros contos. O romance O Jardim sem Limites de 1995 foi galadoado com o Prémio Bordallo de Literatura da Casa da Imprensa. A Maçon foi a sua primeira incursão no teatro. O Vale da Paixão (1988) foi multiplamente galardoado, tendo recebido o Prémio Dom Dinis da Fundaçõ da Casa de Mateus, o Prémio Bordallo de Literatura da Casa da Imprensa, o Prémio Máxima de Literatura, O Prémio de Ficção do P.E.N. Clube e o Prémio Jean Monnet de Literatura Europeia. As mais recentes obras de Lídia Jorge são O Vento Assobiando nas Gruas (2002) e O Belo Adormecido (2004).



Nasceu em Boliqueime (Algarve), no ano de 1946. Licenciou-se em Filologia Românica pela Universidade de Lisboa e foi professora do ensino secundário.
Considerada hoje em dia como uma das romancistas de maior sucesso na literatura portuguesa contemporânea, começou a escrever desde muito jovem. É colaboradora de vários jornais e revistas e tem integrado diversos júris de prémios literários. É membro da Alta Autoridade para a Comunicação Social.
Em 1970, Lídia Jorge parte para África, onde dá aulas em Angola e Moçambique. O pleno ambiente da Guerra Colonial, que aí contactou será descrito mais tarde, através do olhar da mulher de um oficial do exército português, no romance A Costa dos Murmúrios.
Regressada a Lisboa, continuou a dar aulas, foi professora da Faculdade de Letras de Lisboa, actividade que interrompeu para desempenhar funções na Alta Autoridade para a Comunicação Social.
A sua primeira obra, O Dia do Prodígios, constrói-se como uma alegoria ao país fechado e parado que Portugal era sob o regime anterior à revolução de Abril de 74.
O impacto causado por este romance foi, também ele, prodigioso. Lídia Jorge foi de imediato saudada como uma das mais importantes revelações das letras portuguesas e uma voz renovadora do seu imaginário romanesco. A tecitura narrativa dos seus dois primeiros romances mistura vários planos narrativos numa estrutura polifónica de onde se destacam personagens que adquirem uma dimensão metafórica, ou mesmo mítica. Têm sido, associados à literatura sul-americana, pela presença do fantástico.
A sua escrita reflecte a captação da oralidade, bem como uma estrutura narrativa que afirma, a par do discurso do narrador, o discurso das personagens. A cultura de tradição oral, a linguagem dos grupos arcaicos, os seus mitos e simbologias sociais, servem o objectivo de reflexão sobre a identidade cultural portuguesa.
O experimentalismo que marca, sobretudo, as suas primeiras obras começa, entretanto, a tomar um tom mais realista, nomeamente no romance, O Jardim Sem Limites, onde à pequena aldeia de Vilamaninhos, se substitui Lisboa, a metrópole europeia onde se cruzam todas as influências e se rarefazem identidades e territórios.
Os seus romances mantêm uma grande variedade temática. Estão sobretudo ligados aos problemas colectivos do pov o português e às circunstâncias históricas e mudanças da sociedade nacional após o 25 de Abril, assim como à problemática da mulher.

Obra

O Dia dos Prodígios, Publ. Europa-América, 1980; 7ª ed. Lisboa: D. Quixote, 1995.
O Cais das Merendas, Publ. Europa-América, 1982; 5ª ed. Lisboa: D. Quixote, 1995.
Notícia da Cidade Silvestre, Publ. Europa-América, 1984; 10ª ed. Lisboa: D. Quixote, 1994.
A Costa dos Murmúrios, D. Quixote, 1988.
A Última Dona, D. Quixote, 1992.
A Instrumentalina (conto), D. Quixote, 1992.
O Conto do Nadador (lit. juvenil), Contexto, 1992.
O Jardim Sem Limites, D. Quixote, 1995.
A Maçon, D. Quixote / Soc. Port. de Autores, 1997.
Marido e outros contos, Lisboa: D. Quixote, 1997.
A peça de teatro A Maçon, foi encenada em 1997.



Fado do retorno
Amor, é muito cedo
E tarde uma palavra
A noite uma lembrança
Que não escurece nada

Voltaste, já voltaste
Já entras como sempre
Abrandas os teus passos
E páras no tapete

Então que uma luz arda
E assim o fogo aqueça
Os dedos bem unidos
Movidos pela pressa

Amor, é muito cedo
E tarde uma palavra
A noite uma lembrança
Que não escurece nada

Voltaste, já voltei
Também cheia de pressa
De dar-te, na parede
O beijo que me peças

Então que a sombra agite
E assim a imagem faça
Os rostos de nós dois
Tocados pela graça.

Amor, é muito cedo
E tarde uma palavra
A noite uma lembrança
Que não escurece nada

Amor, o que será
Mais certo que o futuro
Se nele é para habitar
A escolha do mais puro

Já fuma o nosso fumo
Já sobra a nossa manta
Já veio o nosso sono
Fechar-nos a garganta

Então que os cílios olhem
E assim a casa seja
A árvore do Outono
Coberta de cereja.




Meus amigos sou de vidro
Sou de vidro escurecido
Encubro a luz que me habita
Não por ser feia ou bonita
Mas por ter assim nascido
Sou de vidro escurecido
Mas por ter assim nascido
Não me atinjam não me toquem
Meus amigos sou de vidro

Sou de vidro escurecido
Tenho fumo por vestido
E um cinto de escuridão
Mas trago a transparência
Envolvida no que digo
Meus amigos sou de vidro
Por isso não me maltratem
Não me quebrem não me partam
Sou de vidro escurecido

Tenho fumo por vestido
Mas por assim ter nascido
Não por ser feia ou bonita
Envolvida no que digo
Encubro a luz que me habita





Sistema Impuro- Ensaio sobre a Língua Portuguesa

Claro que o Português é uma língua maravilhosa. A prova é que se um ladrão me roubar eu encontro as palavras necessárias para lhe gritar atrás. Posso é não apanhar o ladrão nem recuperar a mala. Mas mesmo aí, fico com todas as palavras para me queixar, toda a sintaxe para expor, toda a morfologia para descrever a pessoa em causa e o facto ocorrido. E se ninguém me ligar, encontro todas as palavras para me revoltar e para dizer as frases que substituem a batida com a porta. Também para a ira, o ódio ou apenas o humor, nas ruas, contra os automobilistas inatacáveis, consigo encontrar todas as palavras. A revolta, a diatribe, o grito de rebeldia, a ameaça da vingança, estão ao nosso alcance. E para os outros, os sentimentos bons, os decentes, como são o amor, a amizade, a saudade, a coita, a melancolia, ou mesmo o frenesi, a ansiedade, o despeito, a acédia, o desespero e o ciúme, também encontro todas as palavras que eu quiser.
Mas não só de homem para homem a língua fala. Também encontro todas as palavras para falar com as árvores e as bestas. Encontro todas para mandar aparelhar o coche, fazer o baile e o fado. Um sermão. Tenho todas as palavras para ir à igreja ouvir o sermão e a ladainha. E tenho todas para ir à igreja ouvir o sermão e a ladainha. E tenho todas para comer à beira da estrada, junto às cestas. Tenho todas as palavras para a lavoira, todas para os ventos. A quantidade de palavras sobre os barcos, a maresia, o marejar, o almareado, a tramontana, tudo o mais que vem do mar, como se ele fosse nosso, ou o tivéssemos feito com a nossa própria língua. Palavras para atravessar todos os oceanos, para percorrer todas as praias.
Para o sentimento e o passado presente donde ele brota, tenho todas as palavras necessárias. Até disponho dessa palavra intraduzível na sua unidade e síntese de corpo e afeição que é o colo. O colo intraduzível. Pôr ao colo, andar ao colo, levar ao colo, menino de colo. Não me admira que Joyce e Kafka, lá onde o sentimento melhor toca a abstracção, consigam ser traduzidos na nossa língua como para nenhuma outra. Isto é, posso andar dum lado para o outro sobre a terra, a relva, as colheitas, a floresta, a onda, o corpo humano e a sua alma com todas as palavras para dizer. As palavras do ser, do desejar e do apetecer, as questões sem tempo e fora do tempo, as questões do por dentro, estão nesta língua de forma rica e variada, ao alcance da mão e da língua. Aí, não há nada que dizer. Porém, todos sabemos - Onde ela falha e falta, onde ela não chega, é no campo das coisas contemporâneas do progresso, do bem-estar, das rodas e das máquinas, das recentes engrenagens invisíveis, que podem mais que todas as rodas e todas as máquinas, aquele campo a que, à falta de melhor, poderemos dizer, em vez da pele da Cultura, a Civilização. 2. Aí, sim. No campo da Civilização, como outras línguas, a nossa língua falha. É como se tivéssemos todas as palavras, de forma intemporal, para viver até ao Século Vinte, mas forçados dentro dele. A suspeita que se tem é de que a língua parou com o motor, o vapor e a gasolina, a ideia de que a língua não fez a revolução industrial, não a criou, não saiu dos que a criaram, ou só muito tarde foi inventada. Bastava entrar no automóvel primitivo para a língua não chegar. Não se sabia dizer châssis, nem tablier, nem manette. Não se soube dizer, durante muitos anos. Também bastava entrar num quarto de mulher para não se saber dizer toilette. A tinta para os lábios foi bâton, para as faces foi rouge, o cabelo foi à garçonne e o ondulado chamou-se mis-en-plis. Como hoje shampoing, brushing, rinsage, e lifting, apesar de massagem, manicura, ou permanente. De qualquer modo. Ninguém, há muitos anos, inventou o quer que fosse, em Portugal, no domínio da toilette, para lhe ter dado um nome que viajasse. O mesmo na cozinha. Mousse, soufllé, passe-vite ou kitchnette. Até para kitchenette, essa pequena cozinha que iria tão bem connosco, nós temos nome para chamar. Para não falar no menu, no catering que nós afinal usamos, mas não criámos. Aliás, a criança tem sua tetina posta no biberon e não há palavra portuguesa para envolver essa garrafa com leite, tão primordial. Não há, porque um biberon não é um bebedoiro nem uma mamadeira. E naturalmente que eu queria que o bébé bebesse em português.
E no divertimento, a boîte e o dancing, o discjockey e o rave. E no desporto, tennis, football, goal, outside, off-sider, tudo o mais que é um sem fim, e finalmente Mister. Ah! Como é interessante um português, pequeno e escuro, sarraceno, treinador de futebol, ser chamado de Mister! O Mister isto, o Mister aquilo... Além do escritório onde reina todo poderoso o dossier. Também pelo dossier uma pessoa não pode chamar em Língua Portuguesa. Nem à fadiga muito especial, criada no seio da sociedade do dossier, se pode chamar cansaço ou esgotamento, mas stress. Stress corresponde a um outro tipo de canseira. E quem diz stress diz manager, e management, e marketing, e ship, e fax e também shoping e trade shoping, que não são feiras, nem centros comerciais, nem tão pouco mercados, mas são isso mesmo, shopings e trade shopings, outras noções, outra existência, outros talhes de cintura, outros cabelos, outra pose na vida, boa ou má, não interessa, outra realidade, outra pretensão, outro sonho. E na verdade, eu não me oponho ao sonho nem à realidade. É por isso que me sento junto aos shopings, onde nem sempre me apetece entrar, mas não penso jamais na palavra corrupção.
Porque as línguas são sistemas abertos, e as palavras e as frases, e os sons que vêm dentro delas viajam quando têm combustível para viajar, e implantam-se lá onde encontram um lugar carente duma nova realidade. Vêm com os objectos e as invenções, e ficam se os aceitam. A luta pode chamar-se colonização, e nem sequer é subtil. Gira como o mundo, para além das línguas, presidindo às mortes e às vidas. Em nada como no devir das línguas o anonimato é tão intenso, apesar de ter sujeito. Ninguém é responsável por que na faixa direita das ruas alguém tenha mandado escrever BUS por economia de espaço. Ou TAP-AIR-PORTUGAL, para que até os cegos vejam que a Transportadora é aérea e é de Portugal. Talvez de outro modo, mais sagaz e mais nacionalista se entendesse pior. Talvez até já nem houvesse transportadora aérea portuguesa. O que sei eu? A vida anda e move-se por vontades indomáveis de que nós mesmos somos autores secundários e derradeiros. E jungle, e handicap, e overdose, e stand by, e black out... Ainda há uns anos eu ironizava os parties num livro que escrevi onde se falava de perdas da memória colectiva com uma espécie de ironia. Mas recentemente Agustina Bessa-Luís escreveu um diálogo, sobre o qual Manoel de Oliveira fez um filme, um e outro chamados "Party", ambos de cinco estrelas, e ninguém falou, nem poderia falar, sobre qualquer perda de identidade. Não há tal para perder. Porque o Party, o velho Garden Party à inglesa, entretanto, entrou na nossa vida, e ninguém deu por isso, nem é para lamentar. O Garden Party afinal fazia falta na nossa vida nova, entretanto nova burguesa disfarçado de outra cara, e nós não sabíamos. Como antes os proletários não conheciam a grève, nem o meeting, nem os políticos recentes o gentleman's agreement e a task-force. Então, meu Deus, façamos as pazes com o inelutável, na certeza de que nenhum decreto pode vedar a entrada do sonho e da viagem. E o sonho, ou a facilidade, para quem os usa, está aí.
Por mim, aqui vou vivendo bem com a nossa língua de raiz rural e marítima. Passo pelas ruas e as palavras nascem das coisas com cheiro a maresia, a salmoura e a laranjas. Ainda não inverti a realidade, ainda acho que o champô cheira a amoras, ainda não digo como os meus filhos que o laranjal cheira a champô. Mas não me incomoda o trato com o que chega, embora não me fique indiferente ao que não exporto. De qualquer modo, também coche, o que eu sabia aparelhar, era francês, depois de ter sido checo e húngaro. E charrette, e cachecol e cache-nez. O chá era dos chineses, dialecto mandarino, e o café era árabe, turco, e depois foi italiano. E o lunch que veio de Inglaterra e ficou lanche, servido sob o bule que foi malaio. Palavras que hoje são de todos, porque os objectos são de todos os que os usam, e os seus nomes importados, só por si, não atingem o coração das línguas. O coração de cada língua é que é inatacável. O nó górdio da sintaxe, o nó dos verbos que multiplicam a acção pelos pronomes, os pronomes que definem os sujeitos e os destinatários, activos, passivos, e reactivos. As preposições, as formas de as pôr ou não pôr antes e depois, o modo de juntar as palavras de forma a criar outras, o modo de as sobrepor e despedaçar, esse sistema estruturante das línguas, que faz o idioma e o espírito, mostrável pela Gramática, não regido, isso é que constitui o órgão propulsor da Língua. O coração da língua, o sistema duro, a sua parte mais estável, aquela sobre a qual se pode descansar.
Porque a língua, ela, toda inteira, nunca parou nem pára, é um sistema em permanente corrupção. A língua não precisa de sal. Apodrece com perfume. O aroma da Língua solta-se ao ser arejada, batida, entrada, removida, um sistema aberto, uma realidade mutável consoante as várias outras realidades que a empurram e a definem, e já o disse, os usos são indomáveis. Fiz parte daqueles que queriam implantar em vez de implementar, dos que quiseram espectáculo em vez de show. Em vão. A língua engrossa contra a vontade de cada um. E nós, aqueles que designam por escritores, banais como os banais falantes, vamos pelas partes moles da língua, andamos pelas suas margens corrriqueiras e flácidas, metemo-nos pelos restos, pelas bordas, aproveitamos o que sobeja, o que de repente foge para diante, avessos aos sistemas de conservação, seguros de que o coração da língua enfraquece e esquece, se as franjas da semântica não se renovam. E toda a vivificação é uma novidade, e toda a novidade, no início, uma corrupção. Também já o disse. O que ainda não disse é que, por vezes, assalta-me a absurda ambição de poder falar todas as línguas. Poder entrar na alma delas para perceber onde está a totalidade que as precede, ou se não as precede, pelo menos, a todas elas preside. A ambição de ficar na posse da natureza da fala. Na fantasia de poder tocar todas as línguas sobre o vasto piano delas. Mas depois de obter essa impossível ciência, tudo o que soubesse e aprendesse, seria para falar e escrever em língua portuguesa.
27/06/1997




1 comentário:

Anónimo disse...

Genial!
Lê-se por prazer.