sábado, 3 de março de 2007

A maior feminização do trabalho e a luta pela instrução

Em Portugal, como noutros países europeus, «a construção do Estado-nação e da democracia implicou, desde a sua génese, a delimitação das fronteiras entre os espaços públicos e privados, os quais sendo sexualmente conotados, excluiam as mulheres dos primeiros. Da aceitação desta partilha à sua contestação percorreu-se um longo caminho, através do qual se foi construindo a indivividualidade feminina como ser social e político, sendo as reivindicações de direitos, em especial da instrução, elementos-chave do acesso à cidadania no século XIX.» [VAQUINHAS, Irene, «Historiografia das Mulheres (século XIX), Faces de Eva, Nº3, Edições Colibri, Lisboa, 2000.]
A análise comparativa da linha de pensamento feminino com a de pensamento masculino surge-nos em títulos como A Assembléa Litteraria, Almanach das Senhoras, A Mulher, O Recreio, O Luso, O Sol, A Federação, A Gazeta de Portugal, e A Vanguarda, ou A Voz Feminina, segundo Isabel Ildefonso [autora da dissertação «As Mulheres na imprensa periódica do século XIX – O jornal A Voz Feminina (1868-1869), in JOAQUIM, Teresa, e GALHARDO, Anabela, Novos Olhares – Passado e Presente nos Estudos sobre as Mulheres em Portugal, Celta, Oeiras, 2003) o primeiro jornal feminista editado em Portugal, dirigido por Francisca Wood, uma portuguesa casada com um inglês, que trocou a «comodidade do mundo privado» pela «insegurança do domínio público», defendendo com «grande valor a causa das mulheres na luta pelos seus direitos». No primeiro número, Francisca Wood lançava um primeiro apelo às portuguesas:
«Não queiramos por mais tempo ser, o que até agora temos sido, - bonecas! Aos atractivos que a natureza nos deu, juntemos a preponderância que dá o saber. Às portuguesas não falta inteligência: falta-lhes o amor do estudo sério, falta-lhes o espírito de análise filosófica, não só sobre assuntos abstractos, mas até sobre os fenómenos mais familiares que nos circundam. Façamo-nos pois verdadeiros «Anjos do lar» mostremos ao mundo varonil que lhe não somos inferiores senão em força física. Trabalhemos, e a recompensa será um triunfo glorioso.» [ Voz Feminina, nº1, in CORTEZ, Maria Teresa, «Emancipação Feminina & Contos de Grimm. Versões Portuguesas do Século XIX», O Rosto Feminino da Expansão Portuguesa, CIDM, Lisboa, 1994]
Ela propôs-se assim lutar pela emancipação das mulheres portuguesas através do seu jornal - editado entre 5 de Janeiro de 1868 e 27 de Junho de 1869 - , assumidamente escrito por mulheres, embora alguns dos textos fossem redigidos por homens. Contudo, «não se podia atribuir a redacção a um homem, porque se afirmara que o jornal era totalmente redigido por mulheres, o que não correspondia à verdade. Alguns homens utilizaram pseudónimos femininos (...).» [«As Mulheres na imprensa periódica do século XIX – O jornal A Voz Feminina (1868-1869), Ibidem., p.16.
Escrito por um grupo de mulheres e de homens progressistas que tinha por objectivo modificar o papel da mulher na sociedade, a Voz Feminina não esquecia o seu papel no mundo laboral «até aí interdito às mulheres, com excepção das classes mais baixas, onde o trabalho era apenas tolerado, devido às necessidades económicas. É analisada a situação das mulheres trabalhadoras em alguns países europeus, assim como as perspectivas laborais que se começam a abrir às mulheres de classe mais elevadas devido à instrucção. Começa a ser realidade o acesso às Universidades e a conquista das novas profissões, apesar do oposicionismo mais conservador.»
Logo no primeiro número da Voz Feminina o jornal sugeria a criação de uma associação de modistas, manifestando assim o seu espírito associativista, característico da época que se segue ao triunfo do constitucionalismo e que antecede um período de grande debate ideológico (o movimento republicano organizar-se-á a partir da década de 70). Esperava assim a Voz Feminina que o triunfo da sua publicação se reflectisse para além do discurso sobre a moda e os conceitos de beleza, e mesmo para além dos paradigmas femininos captados pela literatura, e para além da filantropia – mais um dos deveres femininos por excelência, já que o Estado não tinha a seu cargo qualquer tipo de segurança social. O pensamento feminista naquela época congregava pois um misto de sentimento anti-violência (a favor de mulheres vítimas de miséria, dos oprimidos e desprotegidos da nação), com apelos e movimentos de defesa das mulheres, do ambiente, dos animais, e com reinvindicação de direitos civis e políticos. A frontalidade dos seus artigos de opinião deitava por terra uma invisibilidade que seria segura para as suas vidas pessoais, mas de que abdicaram em prol de uma vida pública, não para elas em especial, mas para todas as mulheres. «A mentalidade do século, a que não podiam eximir-se, constituía outra limitação à sua liberdade: não podiam esquecer que, para além de mulheres feministas, jornalistas e lutadoras, eram também senhoras cujas opiniões punham em perigo o seu casamento, vida social e reputação». A um de Julho do mesmo ano o jornal A Voz Feminina continua a publicar-se, mas com outro nome e outras características e direcção - «O Progresso: Continuação da Voz Feminina».
A participação feminina no mundo do trabalho adquire uma outra visibilidade ao formarem-se associações, como anunciou, por exemplo, o jornal A Federação – Folha Industrial Dedicada ás Classes Operárias de 19 de Setembro de 1857: «senhoras artistas costureiras criaram uma associação no Porto achando seo este apelo», na sequência de um artigo assinado por D.M.C.F.D., ou Dona Marianna Candida da Fonseca Dinne (n.Bragança,1820-1902), intitulado «O Brado de uma Mulher» de 14 de Março daquele ano, onde se lia: «arvoro a bandeira de apostolo da emancipação feminina, e ainda que tivesse de morrer sacrificada, bradaria no meio do sacrificio, que só pela instrucção é que podemos conseguir a regeneração, e que esta não se poderá emprehender senão por meio da associação. (...) O único meio, e o mais efficaz, é o da associação de mulheres de corações nobres e pensamentos elevados, que se dediquem sincera e lealmente, que se votem aos maiores sacríficios para promover a instrucção, e fazer valer o direito da mulher! (...) Eia pois! Ávante, caras compatriotas! Preparemos o caminho para as nossas vindouras, que já isso é uma glória.» [ Dona Marianna Candida da Fonseca Dinne, «O Brado de uma Mulher» in A Federação, 14 Março, 1857.]
Nas páginas do jornal A Federação podiam ainda ser lidos artigos de uma outra eloquente professora e jornalista, Maria José da Silva Canuto (n.Caneças, 1812-1890), grande defensora da educação popular, professora régia, que discursava sobre a liberdade e a fraternidade dos povos, e assinava prelecções intituladas «Moral do Evangelho». E uma das nossas primeiras correspondentes certamente, Maria Soares de Albergaria, ou Condessa de Montemerli (nascida no Minho, e casada com um tenor de ópera, o conde italiano Lourenço Montemerli). Vivendo em Itália, os seus escritos surgiram publicados em alguns dos jornais portugueses, como A Política Liberal de 21 de Dezembro de 1860, que publicou uma carta sua escrita em Pisa a 11 de Novembro daquele ano, dirigida ao Imperador da Aústria, Francisco José, e oferecida às italianas, onde faz a defesa da unificação italiana, chegando a afirmar «nós mulheres italianas resgataremos Veneza, seja qual fôr o preço porque elle nol’a quizer ceder». Escritora, com várias obras publicadas, foi também da sua pena que saiu uma carta endereçada ao papa Pio IX onde defende a causa da liberdade da Itália.
Como é referido no colóquio «Utopie et Socialisme au Portugal au XIXe Siecle» por Maria Teresa Salgado ( «Angelina Vidal: Entre Socialisme et Féminisme», Utopie et Socialisme au Portugal au XIXe Siecle, Actes Du Colloque, Paris, 10-13 Janvier 1979, FCG, CCP, Paris, 1982.), ao longo da história houve sempre mulheres célebres e de carácter, mulheres que entenderam que era preciso ir mais longe, do que aquilo que a sociedade burguesa e patriarcal queria. A elas e à sua acção transgressora se deve a mudança da condição feminina ainda no século XIX, porque contribuiram decisivamente para que algo mexesse e abriram caminho para um movimento feminista, sufragista, de transição entre os séculos XIX e XX. Mas para os intelectuais do século XIX o lugar da mulher é no lar (a eterna associação do lar ao lugar do feminino). Apesar de acharem benéfica a educação feminina, porque primeiro a mulher é mãe e dela depende a educação dos homens, eles têm medo de lhe reconhecer demasiadas liberdades. A primeira tentativa para estruturar o ensino feminino em Portugal foi feito pelo governo de Saldanha, em 3 de Agosto de 1870 (desde 1851 que o movimento da Regeneração iria marcar toda a segunda metade do século XIX; este movimento originado pelo golpe do Duque de Saldanha, depôs Costa Cabral, um antigo setembrista radical que, em 1842, havia reposto a Carta Constitucional). Era assim criado em Lisboa um instituto de educação para o sexo feminino; no entanto, as cortes não o aprovaram e anularam-no através de uma lei de 27 de Dezembro de 1870. É apenas em 1885 que a Câmara de Lisboa cria um estabelecimento de ensino para a educação do sexo feminino, a escola D.Maria Pia, e em 1888 é autorizado ao governo o estabelecimento nesta cidade, no Porto e em Coimbra de institutos para o ensino secundário feminino. Todavia esta lei só entra em vigor em 1906 e ao chegarmos a 1910 o ensino primário era o mesmo para os dois sexos, o ensino secundário dispunha em Lisboa de um único estabelecimento para toda a população feminina do país, sendo portanto o ensino privado que colmatava estas lacunas, e apenas no caso das meninas de classe social elevada. Num quadro geral, em 1911 a nossa população com 5 960 056 pessoas, apresentava 68% de homens e 81,2 % de mulheres que não sabiam ler nem escrever (a partir de Dicionário de História de Portugal, dir. de SERRÃO, Joel, «Ensino»). Neste cenário, pode compreender-se que o combate das nossas primeiras feministas pela importância social que é devida à mulher tenha sido a luta pela instrução, como uma etapa necessária para a luta pela emancipação feminina e pela igualdade de direitos. A jovem República portuguesa assistia naquele ano de 1911, pela primeira vez, à nomeação de uma mulher, Carolina Michaëlis de Vasconcellos, professora universitária, e assistia ainda, ao voto de Carolina Beatriz Ângelo – a primeira mulher a votar em Portugal e em toda a Europa do Sul, o que teve projecção além fronteiras -, maior de 21 anos de idade, médica, viúva e chefe de família, preenchendo os requisitos de um «cidadão eleitor»; dois anos mais tarde a lei repunha a ordem masculina e interditava às mulheres o direito ao voto, que lhes será então dado apenas no Estado Novo, em 1931 com certas restrições. Se os homens maiores de 21 anos, analfabetos ou alfabetizados, podiam votar, já elas tinham de ter curso superior ou secundário. Só em 1968, com o marcelismo, foi atingida a consagração da igualdade de voto.

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