sábado, 3 de março de 2007

Natália Correia


Nasceu na ilha em Ponta Delgada, ilha de São Miguel em 1923 e faleceu em Lisboa em 1993. Personalidade intelectual versátil, dedicou-se a vários géneros, além de marcar a sua presença na política e na imprensa. Sua produção abrange a poesia, o romance, o teatro, o ensaio, memórias, relatos de viagem, organização de antologias e colaboração em vários jornais e revistas. Embora tenha começado pela literatura infantil (A Grande Aventura de um Pequeno Herói, 1945) e pelo romance (Anoiteceu no Bairro, 1946) foi na poesia que encontrou a expressão mais depurada de seu temperamento a um só tempo lírico e irónico, características acentuadas a partir de Dimensão Encontrada (1957) e em suas obras dramáticas. Dentro dessa linha, que a tendência surrealista da poesia portuguesa pós-1950 vem sublinhar, compôs grande parte de sua obra poética, revelando um discurso lírico insólito e singular a oscilar entre a linguagem alegórica e a voz interventora. Estão neste caso, por exemplo, Passaporte (1958), o longo poema Cântico do País Emerso (1961) e mais tarde Mátria e Maçãs de Orestes (1970). Em seu livro Poemas a Rebate, publicado em 1975, chama, na introdução, ao conjunto de seus “poemas indóceis” de “pentagrama de indignação”. Indignação constante é o que não falta á obra de Natália Correia seja motivada pela censura que a amordaçou por longo tempo, seja por uma insurreição natural a todos os engodos ideológicos da organização social. A capacidade de abranger, contudo, várias expressões líricas, bem como sentimentos e visões aparentemente opostos, entre a subjectividade romântica e a objectividade realista, levaram-na à composição, nos dois últimos anos, de Sonetos Românticos (1991, Grande prémio da Poesia APE/CTT), na poesia, e ao romance As Núpcias (1992). No primeiro, parece voltar à primeira fase de sua expressão em virtude da abstraccão do objecto lírico, não obstante, agora, mais intelectualizada, beirando certo misticismo da criação poética, da escrita, da expressão verbal. Por isso, define o soneto como “misterioso nó que em sacra escrita / cimos e abismos une”. Abismos, que enfim, de onde sempre procurou garimpar a sua “aurífera” poesia.


Queixa das almas jovens censuradas


Dão-nos um lírio e um canivete
e uma alma para ir à escola
mais um letreiro que promete

raízes, hastes e corola


Dão-nos um mapa imaginário
que tem a forma de uma cidade
mais um relógio e um calendário

onde não vem a nossa idade


Dão-nos a honra de manequim
para dar corda à nossa ausência.
Dão-nos um prémio de ser assim

sem pecado e sem inocência


Dão-nos um barco e um chapéu
para tirarmos o retrato
Dão-nos bilhetes para o céu
levado à cena num teatro


Penteiam-nos os crâneos ermos
com as cabeleiras das avós
para jamais nos parecermos
connosco quando estamos sós


Dão-nos um bolo que é a história
da nossa historia sem enredo
e não nos soa na memória
outra palavra que o medo


Temos fantasmas tão educados
que adormecemos no seu ombro
somos vazios despovoados
de personagens de assombro


Dão-nos a capa do evangelho
e um pacote de tabaco
dão-nos um pente e um espelho
pra pentearmos um macaco


Dão-nos um cravo preso à cabeça
e uma cabeça presa à cintura
para que o corpo não pareça
a forma da alma que o procura


Dão-nos um esquife feito de ferro
com embutidos de diamante
para organizar já o enterro
do nosso corpo mais adiante


Dão-nos um nome e um jornal
um avião e um violino
mas não nos dão o animal
que espeta os cornos no destino


Dão-nos marujos de papelão
com carimbo no passaporte
por isso a nossa dimensão
não é a vida, nem é a morte





Fiz um conto para me embalar


Fiz com as fadas uma aliança.

A deste conto nunca contar.

Mas como ainda sou criança

Quero a mim própria embalar.


Estavam na praia três donzelas

Como três laranjas num pomar.

Nenhuma sabia para qual delas

Cantava o príncipe do mar.


Rosas fatais, as três donzelas

A mão de espuma as desfolhou.

Nenhum soube para qual delas

O príncipe do mar cantou.


Nuvens correndo num rio


Nuvens correndo num rio

Quem sabe onde vão parar?

Fantasma do meu navio

Não corras, vai devagar!


Vais por caminhos de bruma

Que são caminhos de olvido.

Não queiras, ó meu navio,

Ser um navio perdido.


Sonhos içados ao vento

Querem estrelas varejar!

Velas do meu pensamento

Aonde me quereis levar?


Não corras, ó meu navio

Navega mais devagar,

Que nuvens correndo em rio,

Quem sabe onde vão parar?


Que este destino em que venho

É uma troça tão triste;

Um navio que não tenho

Num rio que não existe.




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